Linha de frente https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br É no hospital que as histórias de vida começam e terminam Sat, 25 Dec 2021 12:45:44 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O pulso ainda pulsa https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/10/22/o-pulso-ainda-pulsa/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/10/22/o-pulso-ainda-pulsa/#respond Fri, 22 Oct 2021 17:01:38 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/Paciente-intubado-Luiz-Peixoto-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=173 Parada! Parada! Parada!

José, um homem negro de 50, é trazido para a emergência após uma parada cardiorrespiratória na residência, seu filho mais velho, já adulto formado foi o primeiro a iniciar as compressões torácicas orientado pelo profissional do Samu ao telefone. A médica socorrista chegou à cena e constatou assistolia, é ritmo de parada mais grave, quando não há nenhuma atividade elétrica no coração. Reanimação, adrenalina, intubação na cena. A colega me passou o homem com o coração batendo mas fraco, fraco. As pupilas não reagiam à luz. A pressão arterial não subia mesmo com altas doses de noradrenalina. 

Converso com o rapaz, ele sabe da gravidade do quadro de seu pai, da quase impossibilidade de reversão. 

Tranquilo, doutor, estou tranquilo. O problema são meus irmãos, somos sete, até criança – e chora tenso.

Poucos minutos depois anunciamos o óbito.

Lembro de meu sogro que não conheci, um homem negro que morreu subitamente de infarto aos 49 e de meu cunhado que ainda era menino.

Dia de permanecer na emergência, passo os casos de mim para mim mesmo e para o time do plantão noturno: uma interna, um interno (estudantes do último ano de medicina), um R2 (residente do segundo ano), uma R1(residente do primeiro ano) e para o assistente que veio dividir comigo as atribuições.

O novo assistente, primeiro dia no pronto-socorro, foi nosso residente. A gente fica feliz quando nossos alunos voltam como colegas, sinal de que levaram algo para a suas vidas da formação que lhes oferecemos. 

Enquanto discutimos os casos, algo pessimista, eu falo com os internos sobre as questões pessoais que precisamos administrar para estarmos ali, na emergência. 

Perto da meia-noite chega uma ambulância do Samu, suporte básico sem médico. Trazem João, um homem negro de 47 anos, mais uma parada cardiorrespiratória. Penso novamente no avô de meus filhos que não conheci, enquanto corro pro carrinho de parada. Checo o ritmo: fibrilação ventricular.  Gravíssimo, mas é possível reverter com choque no peito. 

Projeto meu corpo para a frente, apoio as pás do desfibrilador no tórax do paciente. Eu me afasto, vocês se afastam, todos afastados. Carrego as pás. Choque! Compressões torácicas. Nada acontece, o coração do homem permanece inerte.

Distribuo as tarefas na sala. Os internos comprimem o peito 100 vezes por minuto, o residente controla a via aérea, um interno da cirurgia se oferece para controlar o tempo. A enfermeira organiza os técnicos e estudantes de enfermagem, eles administram adrenalina e antiarrítmicos na veia. Ela tem muita experiência em emergências cardiológicas, tudo organizado, sabe todos os próximos passos. A equipe trabalha compenetrada. 

Eu falo no ouvido do homem que ele tem que sair dessa, o coração vai voltar a bater! Estou confiante.

Paciente intubado, bem ventilado. Todos os protocolos feitos em acordo com as melhores recomendações de suporte avançado de vida, o coração persiste em não voltar.

Uma linha reta aparece no monitor, parece que não vai dar mais. A interna coloca as pás no peito do homem, fibrilação, ainda cabe um choque. Choque! Ela massageia buscando forças, após 12 ciclos, com o devido revezamento, todos suados.

Eu me aproximo para o próximo ciclo, subo a escadinha, um novo traçado surge no monitor. Coloco a mão no pescoço do homem procurando a carótida: tem pulso! Tem pressão! Tem perfusão! Nos abraçamos na sala, isso não é frequente, sair abraçando a equipe. Mas o abraço naquela hora foi necessário. 

O eletrocardiograma revela um infarto extenso e o paciente vai transferido para o serviço de hemodinâmica de referência, para um cateterismo cardíaco de urgência. O residente o conduz para a ambulância, as luzes vão se afastando.

Eu permaneço torcendo do fundo de meu coração para que esse João conheça os seus netos, diferente de meu sogro que as circunstâncias da vida e da morte não permitiram conhecer meus filhos.

No caso de hoje, como disse Arnaldo: o pulso ainda pulsa.

O pulso ainda pulsa!

 

]]>
0
Os professores e o milagre da vida https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/10/15/os-professores-e-o-milagre-da-vida/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/10/15/os-professores-e-o-milagre-da-vida/#respond Sat, 16 Oct 2021 02:57:18 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/WhatsApp-Image-2021-10-15-at-23.55.27-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=164 Nesses anos atuando com pacientes graves em situações críticas aprendi aos pouquinhos a ver a morte sem chorar, como na música de Vandré, mas há alguns dias saindo do hospital, os soluços e lágrimas me desafiaram, eu fechei os olhos e regressei no tempo. Prepare seu coração.

Eu venho lá do sertão. No início dos anos 1990 cheguei a São Paulo, fui morar na Vila Carioca, um bairro operário, lá ingressei na Escola Municipal Desembargador Francisco Meirelles.

No começo do ano letivo de 1993 o professor de Ciências entrou na sala, com ciso, nem um sorriso ofereceu. Classe lotada, quente, fevereiro. Ninguém o conhecia. O homem escreveu na lousa, com o giz arrastando e fazendo aquele barulho: Professor Jacomo. 

A molecada começou a debochar, com gritos, urros e eventuais bolas de papel lançadas para cima.

Ele virou de frente para a sala e permaneceu sem mexer um músculo da face. Quando só ouvíamos a sua respiração ele abriu os braços, parlando com as mãos e fez um discurso tão firme que ficamos todos envergonhados.

A escola, assim como a rede do município, estava em situação precária, apesar de professores dedicados e de uma comunidade participativa. Jacomo nos disse que se não levássemos a sério os nossos estudos, se não respeitássemos os nossos professores, cumpriríamos o projeto que visava a destruição da educação pública e a nossa exploração como mão de obra barata. 

Foi naquela sala quente, na sexta série B, na escola cercada de fábricas, que pela primeira vez ouvi um professor falar da Teoria da Evolução. Professor Jacomo apresentou o velho Charles para mim e meus amigos de um jeito bonito e comovente. Na aula sobre a origem da vida, ele fez um modelo de giz colorido na lousa ilustrando como a partir de gases naturais, agregados de carbono, nitrogênio, oxigênio e hidrogênio teriam surgido os primeiros peptídeos e que esses em determinado momento passaram a se replicar, até que surgiu vida, feita de mágica aleatória.  

Eu já tinha um tipo de paixão pela ciência, a partir de então eu e ela estávamos mais pertinho, conduzidos pela mão do mestre, que também fazia surgir vida: com o giz na lousa perante quarenta adolescentes numa sala de aula na periferia da metrópole.

Com o tempo, classe e professor foram se aproximando, fomos nos entendendo. Ele coordenou a apresentação de nossa turma na festa da primavera. Os jovens bravos do início do ano nos apresentamos fantasiados de margaridas. Ele lançou sementes bonitas em nós todos, assim outras primaveras foram possíveis. 

Mas o mundo foi girando, anos depois quando passei a estudar Medicina as aulas de Jacomo fizeram ainda mais sentido para mim. Resolvi escrever uma carta de agradecimento e fui até a escola Gualter da Silva, que alguém me disse que ele dirigia; ninguém me deu notícia, disseram que ele não trabalhava mais lá. Voltei com a carta para casa e não sei o que fiz com ela.

Felizmente encontrei o meu professor na rede social muitos anos depois e voltamos a nos falar. Eu agradeci pelas sementes que ele lançou por aqui, e ele demonstrou satisfação. O homem reproduzia textos que eu escrevia, entrevistas que eu oferecia, com o preâmbulo: “o doutor foi meu aluno”.

Há poucos meses a esposa de Jacomo faleceu, nós falamos sobre sentimentos e condolências, ele ainda vivia o luto quando morreu. Talvez por isso engasguei, naquele momento em que soube de sua morte. Chorei no corredor repetindo: obrigado, obrigado, obrigado.

Nesse dia dos professores, em nome de sua memória, querido Jacomo Facio Neto, agradeço às professoras e aos professores que colaboraram com minha formação. Agradeço também a todos os educadores que insistem em semear, que resistem à barbárie, e nos dão esperança no porvir. A educação promove milagres, graças a profissionais que vão além das limitações materiais, da falta de reconhecimento, de condições precárias de trabalho para fazerem surgir e multiplicar a vida. Haja sementes, há primavera!

 

 

 

]]>
0
Carlos Neder, presente! https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/25/carlos-neder-presente/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/25/carlos-neder-presente/#respond Sun, 26 Sep 2021 00:13:43 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/4DDF2C8A-48CB-48D4-8B3F-500786291891-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=150 No início dos anos 2000, durante a graduação em medicina na USP, eu participei da direção do Caoc (Centro Acadêmico Oswaldo Cruz). Nossa geração tinha grande orgulho de sermos sucessores de jovens que se engajaram na resistência à ditadura civil-militar brasileira, e passamos a promover encontros entre os estudantes da época com a chamada velha guarda, que dirigiu o Caoc entre os anos 1960 e 1970.

Foi num desses momentos que conheci Carlos Neder. Se vocês não estão lembrados, dá licença de falar, Carlos era de Campo Grande, ingressou na Fmusp em 1973 e recebeu a alcunha de Mato Grosso. Destaco: o Mato Grosso do Sul só foi criado em 1977.

O estudante Mato Grosso atuou no Caoc como diretor do departamento de pesquisas médicas e sociais. Entre suas atribuições, passou a frequentar comunidades carentes da Zona Leste onde, ao lado de seus companheiros da faculdade e orientados por jovens médicos atendia pessoas pobres no terreno de uma igreja e discutia política no território.

Essa militância estudantil foi decisiva para a organização de movimentos populares fundamentais à chamada reforma sanitária brasileira. Quando Neder se formou, não teve dúvidas de que se dedicaria à saúde pública e passou a trabalhar como sanitarista no extremo Leste de São Paulo, de onde seguiu lançando sementes, colaborando com a construção do que seria o nosso Sistema Único de Saúde, com a saúde sendo considerada direito de todos e dever do Estado na Constituição de 1988.

Neder foi secretário municipal de saúde na gestão de Luiza Erundina, vereador da capital e deputado estadual, mas ao falar de Carlos antes de citar qualquer cargo que ocupou, destaque-se um homem que nunca vacilou na defesa dos seus princípios éticos e morais, da democracia como caminho e do socialismo como horizonte. Suas convicções muitas vezes lhe custaram, dentro de um sistema político extremamente pragmático, com os parlamentares apartados de suas chamadas bases sociais, mas Neder sempre teve Mato Grosso, um jovem sonhador, orientando os seus caminhos.

Soube há algumas semanas que meu amigo estava com Covid-19, que fora internado, depois transferido para uma unidade de terapia intensiva, eram sucessivas notícias de agravamento de seu quadro clínico. Há dois dias soubemos que Carlos se encontrava numa situação irreversível, sob cuidados paliativos exclusivos. Confesso que as lágrimas me desafiaram, com tristeza pela iminência da perda de meu amigo, mas de alguma maneira contemporizado pelo fato dele ter o tratamento voltado para o alívio de qualquer sofrimento. Hoje soube que Carlos morreu, mas os semeadores deixam legados bonitos que terão consequências não apenas aqui e agora, mas também no porvir.

Meu amigo Carlos, superaremos essa pandemia, reencontraremos os caminhos para a construção do SUS, obra de sua vida e de tantas outras pessoas valorosas, haverá primavera e haverá memória.

Carlos Neder, presente!

]]>
0
O jeito de morrer uma estrela na pandemia https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/08/26/o-jeito-de-morrer-uma-estrela-na-pandemia/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/08/26/o-jeito-de-morrer-uma-estrela-na-pandemia/#respond Fri, 27 Aug 2021 02:19:24 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/Kepler-Supernova-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=119 Nos dias da chamada segunda onda de Covid-19 no Brasil, Desirée chegou à emergência trazida pelo SAMU, desacompanhada, numa tarde sem muito sol. Altiva em seus oitenta anos, com as sobrancelhas perfeitamente delineadas, envoltas a algumas rugas e manchas acastanhadas pela pele branca. Cansada, saturação de sessenta por cento, extremidades frias e azuladas, ela melhorou razoavelmente com uma máscara não reinalante e dez litros de oxigênio por minuto. A frequência respiratória ainda estava elevada mas as saturação ficou por volta de noventa.

Um quadro gripal se instalara havia uma semana, passara três dias sem conseguir sair do sofá, algo prostrada, era mais uma pessoa infectada pelo coronavírus. Morava sozinha, estava isolada. Família?  Tinha uma filha já com seus sessenta anos, mas não se visitavam nem antes da pandemia. 

Por que demorou tanto pra pedir ajuda?

Porque já sabia que ia morrer. 

Como assim? Um dia todos vamos morrer. Mas essa doença é aguda, é possível tentar tratar.

Você sabe que eu não tenho chance. Fala a verdade? Eu tenho chance?

Seu quadro é grave, mas dá pra dar remédio e tentar desinflamar o pulmão, dar oxigênio. Se precisar a gente pode intubar e levar pra unidade de terapia intensiva.

Intubar é colocar aquele tubo pela boca e ligar naquele aparelho?

Sim!

De jeito nenhum! Doutor, eu me apresentei até em Paris, eu sou uma estrela. Isso é jeito de morrer uma estrela? Com esse negócio na boca? Numa máquina dessas? Largada numa UTI que nem minha irmã? 

O que a senhora quer que eu faça?

Um guaraná! Me arruma um guaraná que eu te dou cinquenta reais. Eu só preciso de um guaraná geladinho com uma fatia de laranja!

Eu recusei a oferta, mas busquei à revelia dos protocolos, o guaraná gelado com a fatia de laranja desejado por Desirée. Na saída do pronto-socorro encontrei a sua filha.

Sua mãe está grave, com risco de morte imediato, mas estamos cuidando dela.

Quero que faça tudo! Não tem vaga de UTI?

Eu respeito seu sofrimento, mas Desisée está consciente, bem orientada, ela não autorizou que fizéssemos procedimentos invasivos, e também disse que não quer ir pra UTI.

Eu exijo! Se você não salvar minha mãe eu vou processar você, o hospital, todo mundo!

Retorno à emergência, Desirée toma o guaraná pelo canudinho com algum esforço.

Sua filha disse que vai me processar se eu não mandar a senhora pra UTI.

O quê? Eu tive doze filhos felinos e uma humana. Ela é a pior. Isso é remorso… lembrou que tem mãe? Eu não quero! Ainda mais se sair daqui dependendo dela. Minha vida foi muito boa, não queria pegar essa desgraça, mas está tudo certo!

Na saída do plantão consegui um cateter de alto-fluxo e deixei Desirée algo mais confortável. Escrevi no prontuário os desejos de Desirée e passei o caso.

No dia seguinte retornei ao hospital, mas não encontrei Desirée. Olhando para o leito vazio, lembrei Carl Sagan em Cosmos, dizendo que todos nós somos feitos de poeira de estrelas mortas. Que a vida é feita estrelas mortas. Dediquei esse pensamento à Desirée que devolvia ao universo a matéria.

Algumas semanas depois chegou uma notificação a meu respeito, direto da ouvidoria do hospital, fui chamado para tomar ciência, era da filha de Desirée.

Um bilhete, escrito com caneta tinteiro trazia a sentença:

Doutor, estou ainda abatida pela morte de minha mãe. Não tem sido fácil. Peço desculpas por ter te destratado no momento em que cuidava dela, receba essa rosa com agradecimento – até sempre. 

 

 

]]>
0
Uma história sobre o retorno de doenças imunopreveníveis https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/05/uma-historia-sobre-hesitacao-vacinal/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/05/uma-historia-sobre-hesitacao-vacinal/#respond Sat, 05 Jun 2021 08:49:12 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/Captura-de-Tela-2021-06-05-às-05.38.49-300x215.png https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=99 Neste 5 de junho as unidades de saúde de São Paulo estarão abertas para vacinação contra a Covid-19, o objetivo é vacinar quem recebeu a primeira mas perdeu a segunda dose: somam-se mais de meio milhão de pessoas nesta condição, apenas neste estado.

Durante a pandemia, a hesitação vacinal cresce e as taxas de imunização caem com a disseminação de desinformações, como as autoridades que divulgam inverdades sobre a falta de segurança dos produtos oferecidos no Brasil, ultrapassando os limites da racionalidade quando um Senador da República perguntou ao diretor do Instituto Butantã se a Coronavac seria feita de “células de fetos abortados”, sendo prontamente esclarecido sobre o seu absurdo.

Considerei razoável contar uma história sobre outra doença imunoprevenível já erradicada, mas reintroduzida no Brasil nos últimos anos.

Um homem jovem com seus trinta e poucos anos, de rosto muito avermelhando e pele descascando comparece à consulta, vem acompanhado de uma mulher mais experiente.

Minha mãe pode entrar?

Claro que pode.

Ele se acomoda bem em minha frente, ela ajeita a cadeira no segundo plano. Enquanto ele narra a história de seu adoecimento, ela mantem o pescoço e olhos firmes me examinando.

Sarampo! O paciente já sabia o seu diagnóstico. Qual seria, então, o motivo da consulta?

É preciso saber, doutor, como depois de trinta anos foi aparecer esse sarampo?!

Então, nós tivemos o sarampo erradicado no Brasil em 2016, infelizmente a cobertura vacinal foi caindo, sabe como é? Tem gente que não se vacina! Além de ter muito posto fechado no país a fora com falta de verba e de equipe, tem muitas fakenews. Aí o vírus volta a circular. Mesmo a vacina tendo eficácia de 97% algumas pessoas vacinadas acabam sendo infectadas quando tem surtos.

O rapaz olha o chão, olha a janela, olha a mãe.

Sabe o que é, doutor? Eu criei meu filho longe dessas coisas artificiais da sociedade de consumo.

Como?

Essas doutrinações! O senhor sabia que as vacinas são perigosas. Essa do sarampo mesmo pode provocar problemas seríssimos!

Ele nunca tomou vacinas?

Só quando era bem pequeno, meses. Depois nos livramos!

A senhora sabia que sarampo pode dar pneumonia grave e infecção no sistema nervoso?

Recebo um olhar desafiador de minha interlocutora.

O pior são as coisas artificiais que as pessoas injetam umas nas outras! O senhor aceita uma indicação de um livro muito sério, de uma cientista muito renomada, sobre os perigos das vacinas?

Eu gostaria de falar que a vacina contra o sarampo reduziu em 84% as mortes pela doença ao ano no mundo. Que só neste século XXI mais de 20 milhões de vidas já foram salvas apenas por esta vacina, que a maior prova de que a imunização protege ela tinha em seu filho infectado, mas ficou para outra ocasião.

Ele com o gesto consternado e ela triunfante se despediram elegantemente e saíram da sala. A mãe voltou com metade do corpo porta adentro e falou comigo, algo sussurrante.

O senhor precisa se atualizar! Estar aberto a novas ideias! Vou mandar algumas referências para o seu email, permite?

Bom final de semana!

]]>
0