Linha de frente https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br É no hospital que as histórias de vida começam e terminam Sat, 25 Dec 2021 12:45:44 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O significado de um dia sem mortos https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/11/08/o-significado-de-um-dia-sem-mortos/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/11/08/o-significado-de-um-dia-sem-mortos/#respond Mon, 08 Nov 2021 22:14:31 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/Mulher-de-alta-se-despede-do-hospital-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=182 No feriado prolongado dedicado à memória dos mortos, eu dei três plantões na emergência referenciada em que se atendem exclusivamente casos graves, entre os quais não fiz um único diagnóstico de Covid-19. A realidade da chamada linha de frente é uma biópsia do que acontece no mundo ao redor, a cidade de São Paulo inteira registrou um óbito no dia de finados. Então, uma centelha de esperança me aqueceu.

A sequência de notícias positivas culmina neste dia 08 de novembro, quando pela primeira vez desde o início da pandemia, o boletim epidemiológico do estado de São Paulo não registrou um único óbito. Nenhum. Nenhuma morte por coronavírus.

Falando de um hospital que precisou providenciar leitos de internação na emergência, onde já passamos mais de uma semana com paciente aguardando vaga de terapia intensiva, onde a gente intubava uma pessoa enquanto outras aguardavam o primeiro atendimento em macas de ambulância, há um alento. E esse resultado se deve sem dúvidas ao avanço da vacinação em São Paulo e no Brasil.

Apesar dos próceres do negacionismo que boicotaram como puderam a imunização, bastou a chegada das vacinas para os profissionais do Sistema Único de Saúde distribuírem e vacinarem maciçamente a população. Graças a esses trabalhadores e ao nosso povo, que tem como patrimônio o maior programa público de imunizações do mundo, por aqui a realidade atropelou os grupos de WhatsApp e propaganda oficiosa, 94% das pessoas assumiram querer se vacinar.

Destaque-se que é possível que o número zero de óbitos seja corrigido nos próximos dias, mas esse registro de um dia sem mortos em São Paulo deve ser celebrado e significa, antes de tudo, que as vacinas salvam vidas e nos dão expectativas de superar a pandemia.

Entretanto, destaque-se que os imunizantes contra a Covid-19 são mais eficazes para prevenir casos graves e mortes do que infecções, e as chamadas medidas não farmacológicas, como uso de máscaras, ventilação de ambientes e limitação do número de pessoas em eventos para evitar aglomerações são necessários para evitarmos a recrudescência observada na Europa, em que países com menor cobertura vacinal do oriente passam pelo pior momento da pandemia tanto em número de casos quanto de mortes, e no ocidente há uma explosão de casos com aumento menor de óbitos graças às vacinas.

Quem nessa altura segue fazendo propaganda antivacina atenta contra a vida em larga escala, assim como quem alega razões individuais para recusa da imunização que não protege apenas o indivíduo mas toda a coletividade.

Nesse momento é possível e necessário celebrar a vida, a ciência, o nosso tão atacado SUS e seus trabalhadores. Mas não percamos o horizonte de cuidados, nem esqueçamos que a pandemia descontrolada em diversos lugares do globo, a propaganda antivacina, e a distribuição desigual dos imunizantes – enquanto 51% da população mundial recebeu ao menos uma dose de vacina contra a Covid-19, em países de baixa renda esse número cai para 4,2%, faz com que o conjunto da humanidade siga em risco.

Haverá porvir, mas para superar a Covid-19 precisamos vencer as epidemias de individualismo e de desinformação. Haja vida!

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O pulso ainda pulsa https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/10/22/o-pulso-ainda-pulsa/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/10/22/o-pulso-ainda-pulsa/#respond Fri, 22 Oct 2021 17:01:38 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/Paciente-intubado-Luiz-Peixoto-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=173 Parada! Parada! Parada!

José, um homem negro de 50, é trazido para a emergência após uma parada cardiorrespiratória na residência, seu filho mais velho, já adulto formado foi o primeiro a iniciar as compressões torácicas orientado pelo profissional do Samu ao telefone. A médica socorrista chegou à cena e constatou assistolia, é ritmo de parada mais grave, quando não há nenhuma atividade elétrica no coração. Reanimação, adrenalina, intubação na cena. A colega me passou o homem com o coração batendo mas fraco, fraco. As pupilas não reagiam à luz. A pressão arterial não subia mesmo com altas doses de noradrenalina. 

Converso com o rapaz, ele sabe da gravidade do quadro de seu pai, da quase impossibilidade de reversão. 

Tranquilo, doutor, estou tranquilo. O problema são meus irmãos, somos sete, até criança – e chora tenso.

Poucos minutos depois anunciamos o óbito.

Lembro de meu sogro que não conheci, um homem negro que morreu subitamente de infarto aos 49 e de meu cunhado que ainda era menino.

Dia de permanecer na emergência, passo os casos de mim para mim mesmo e para o time do plantão noturno: uma interna, um interno (estudantes do último ano de medicina), um R2 (residente do segundo ano), uma R1(residente do primeiro ano) e para o assistente que veio dividir comigo as atribuições.

O novo assistente, primeiro dia no pronto-socorro, foi nosso residente. A gente fica feliz quando nossos alunos voltam como colegas, sinal de que levaram algo para a suas vidas da formação que lhes oferecemos. 

Enquanto discutimos os casos, algo pessimista, eu falo com os internos sobre as questões pessoais que precisamos administrar para estarmos ali, na emergência. 

Perto da meia-noite chega uma ambulância do Samu, suporte básico sem médico. Trazem João, um homem negro de 47 anos, mais uma parada cardiorrespiratória. Penso novamente no avô de meus filhos que não conheci, enquanto corro pro carrinho de parada. Checo o ritmo: fibrilação ventricular.  Gravíssimo, mas é possível reverter com choque no peito. 

Projeto meu corpo para a frente, apoio as pás do desfibrilador no tórax do paciente. Eu me afasto, vocês se afastam, todos afastados. Carrego as pás. Choque! Compressões torácicas. Nada acontece, o coração do homem permanece inerte.

Distribuo as tarefas na sala. Os internos comprimem o peito 100 vezes por minuto, o residente controla a via aérea, um interno da cirurgia se oferece para controlar o tempo. A enfermeira organiza os técnicos e estudantes de enfermagem, eles administram adrenalina e antiarrítmicos na veia. Ela tem muita experiência em emergências cardiológicas, tudo organizado, sabe todos os próximos passos. A equipe trabalha compenetrada. 

Eu falo no ouvido do homem que ele tem que sair dessa, o coração vai voltar a bater! Estou confiante.

Paciente intubado, bem ventilado. Todos os protocolos feitos em acordo com as melhores recomendações de suporte avançado de vida, o coração persiste em não voltar.

Uma linha reta aparece no monitor, parece que não vai dar mais. A interna coloca as pás no peito do homem, fibrilação, ainda cabe um choque. Choque! Ela massageia buscando forças, após 12 ciclos, com o devido revezamento, todos suados.

Eu me aproximo para o próximo ciclo, subo a escadinha, um novo traçado surge no monitor. Coloco a mão no pescoço do homem procurando a carótida: tem pulso! Tem pressão! Tem perfusão! Nos abraçamos na sala, isso não é frequente, sair abraçando a equipe. Mas o abraço naquela hora foi necessário. 

O eletrocardiograma revela um infarto extenso e o paciente vai transferido para o serviço de hemodinâmica de referência, para um cateterismo cardíaco de urgência. O residente o conduz para a ambulância, as luzes vão se afastando.

Eu permaneço torcendo do fundo de meu coração para que esse João conheça os seus netos, diferente de meu sogro que as circunstâncias da vida e da morte não permitiram conhecer meus filhos.

No caso de hoje, como disse Arnaldo: o pulso ainda pulsa.

O pulso ainda pulsa!

 

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Os professores e o milagre da vida https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/10/15/os-professores-e-o-milagre-da-vida/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/10/15/os-professores-e-o-milagre-da-vida/#respond Sat, 16 Oct 2021 02:57:18 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/WhatsApp-Image-2021-10-15-at-23.55.27-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=164 Nesses anos atuando com pacientes graves em situações críticas aprendi aos pouquinhos a ver a morte sem chorar, como na música de Vandré, mas há alguns dias saindo do hospital, os soluços e lágrimas me desafiaram, eu fechei os olhos e regressei no tempo. Prepare seu coração.

Eu venho lá do sertão. No início dos anos 1990 cheguei a São Paulo, fui morar na Vila Carioca, um bairro operário, lá ingressei na Escola Municipal Desembargador Francisco Meirelles.

No começo do ano letivo de 1993 o professor de Ciências entrou na sala, com ciso, nem um sorriso ofereceu. Classe lotada, quente, fevereiro. Ninguém o conhecia. O homem escreveu na lousa, com o giz arrastando e fazendo aquele barulho: Professor Jacomo. 

A molecada começou a debochar, com gritos, urros e eventuais bolas de papel lançadas para cima.

Ele virou de frente para a sala e permaneceu sem mexer um músculo da face. Quando só ouvíamos a sua respiração ele abriu os braços, parlando com as mãos e fez um discurso tão firme que ficamos todos envergonhados.

A escola, assim como a rede do município, estava em situação precária, apesar de professores dedicados e de uma comunidade participativa. Jacomo nos disse que se não levássemos a sério os nossos estudos, se não respeitássemos os nossos professores, cumpriríamos o projeto que visava a destruição da educação pública e a nossa exploração como mão de obra barata. 

Foi naquela sala quente, na sexta série B, na escola cercada de fábricas, que pela primeira vez ouvi um professor falar da Teoria da Evolução. Professor Jacomo apresentou o velho Charles para mim e meus amigos de um jeito bonito e comovente. Na aula sobre a origem da vida, ele fez um modelo de giz colorido na lousa ilustrando como a partir de gases naturais, agregados de carbono, nitrogênio, oxigênio e hidrogênio teriam surgido os primeiros peptídeos e que esses em determinado momento passaram a se replicar, até que surgiu vida, feita de mágica aleatória.  

Eu já tinha um tipo de paixão pela ciência, a partir de então eu e ela estávamos mais pertinho, conduzidos pela mão do mestre, que também fazia surgir vida: com o giz na lousa perante quarenta adolescentes numa sala de aula na periferia da metrópole.

Com o tempo, classe e professor foram se aproximando, fomos nos entendendo. Ele coordenou a apresentação de nossa turma na festa da primavera. Os jovens bravos do início do ano nos apresentamos fantasiados de margaridas. Ele lançou sementes bonitas em nós todos, assim outras primaveras foram possíveis. 

Mas o mundo foi girando, anos depois quando passei a estudar Medicina as aulas de Jacomo fizeram ainda mais sentido para mim. Resolvi escrever uma carta de agradecimento e fui até a escola Gualter da Silva, que alguém me disse que ele dirigia; ninguém me deu notícia, disseram que ele não trabalhava mais lá. Voltei com a carta para casa e não sei o que fiz com ela.

Felizmente encontrei o meu professor na rede social muitos anos depois e voltamos a nos falar. Eu agradeci pelas sementes que ele lançou por aqui, e ele demonstrou satisfação. O homem reproduzia textos que eu escrevia, entrevistas que eu oferecia, com o preâmbulo: “o doutor foi meu aluno”.

Há poucos meses a esposa de Jacomo faleceu, nós falamos sobre sentimentos e condolências, ele ainda vivia o luto quando morreu. Talvez por isso engasguei, naquele momento em que soube de sua morte. Chorei no corredor repetindo: obrigado, obrigado, obrigado.

Nesse dia dos professores, em nome de sua memória, querido Jacomo Facio Neto, agradeço às professoras e aos professores que colaboraram com minha formação. Agradeço também a todos os educadores que insistem em semear, que resistem à barbárie, e nos dão esperança no porvir. A educação promove milagres, graças a profissionais que vão além das limitações materiais, da falta de reconhecimento, de condições precárias de trabalho para fazerem surgir e multiplicar a vida. Haja sementes, há primavera!

 

 

 

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Queiroga é um ministro de cabeça abaixada e dedo erguido https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/21/queiroga-e-um-ministro-de-cabeca-abaixada-e-dedo-erguido/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/21/queiroga-e-um-ministro-de-cabeca-abaixada-e-dedo-erguido/#respond Tue, 21 Sep 2021 14:25:44 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/Marcelo-Queiroga-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=139 Era uma vez um governo acuado. Após demitir dois médicos experimentados em gestão, o presidente ofereceu o Ministério da Saúde a um General de sua mais elevada confiança, a sua missão seria deixar o vírus circular livremente, o que traria mortos (e daí?) mas também a chamada “imunidade de rebanho”, assim o país sairia da pandemia antes dos outros e o impacto econômico seria minimizado.

A tese defendida pelo governo, antiética e sem lastro científico mostrou-se equivocada e após centenas de milhares de mortos, da paralisação da capacidade produtiva do país, uma CPI passou a ameaçar o presidente. Tem que mudar isso aí! Encontraram alguém que tinha diploma de medicina, alguma projeção em sua especialidade e trânsito dentro da corporação médica.

Nas primeiras entrevistas como ministro, Marcelo Queiroga declarou de peito aberto que os posicionamentos de seu exercício ministerial seriam técnicos.

Não demorou muito para que o ministro ocupasse o palco da Comissão Parlamentar de Inquérito. Lá vimos um homem de fala embargada, ombros retraídos e cabeça baixa que, para a vergonha de Hipócrates e dos seguidores de seus preceitos, declarou que não tinha condições de julgar as políticas de governo que precederam sua presença no Ministério. Ao ser testado pelos Senadores, que procuraram nele algum senso republicano, Marcelo declarou que não tinha condições de censurar o presidente e agradecia a ele por ter lhe concedido a maior oportunidade sua vida. Oportunidade, oportunidade, oportunidade.

Após dar seguidas declarações contra a obrigatoriedade do uso de máscaras, na última semana, Queiroga orientou por ato de ofício a suspensão da vacinação de adolescentes, e ainda apelou às mães para que não vacinassem seus filhos com argumentos pseudocientíficos e inverdades, o Ministro tirou aos poucos e em definitivo a máscara de defensor da ciência.

Agora, Queiroga que faz parte do cortejo do único presidente que não recebeu vacina entre todos os presentes à 76a Assembleia-Geral da ONU, nos EUA, enfrenta com dedo médio erguido, pessoas que protestam contra as políticas do Governo que ele alegou de cabeça baixa que não tinha condições de julgar.

Indiferente ao desastre na condução do enfrentamento da pandemia, também por sua responsabilidade, que já resultou em quase 600 mil mortes confirmadas, Queiroga demonstra não ter limites para defender seu cargo e para retribuir a oportunidade que recebeu de Bolsonaro. Na Assembleia-Geral da ONU, Bolsonaro faz mais um discurso negacionista, que entrará para a história como exemplo vexaminoso, Marcelo Queiroga faz parte da claque que o aplaude.  Oportunidade, oportunidade, oportunidade.

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Manifestações a favor do descontrole da pandemia e do colapso econômico https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/07/manifestacoes-a-favor-do-descontrole-da-pandemia-e-do-colapso-economico/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/07/manifestacoes-a-favor-do-descontrole-da-pandemia-e-do-colapso-economico/#respond Tue, 07 Sep 2021 17:29:37 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/Protesto-bolsonarista-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=62 Um dos primeiros casos graves de Covid-19 que atendi, ainda em março de 2020, foi o de Edwiges, 44, negra. Ela trabalhava como cuidadora de idosos e estava na residência dos patrões num bairro rico, quando foi resgatada pela equipe do Samu, já em insuficiência respiratória.

A imagem da tomografia de tórax com pneumonia bilateral, foi suficiente para deixá-la em isolamento respiratório e para justificar a coleta do RT-PCR para o Sars-CoV-2. Eu solicitei transferência para uma UTI destacada para pessoas infectadas pelo coronavírus, mas ela não aguentaria aguardar sem ser intubada.  Expliquei o procedimento e ela assentiu com a cabeça, respirando rápido e superficialmente, mesmo com máscara de oxigênio com reservatório.

O fisioterapeuta, o enfermeiro e eu formamos um triângulo em volta da paciente. Bem posicionada, tudo checado. Sequencia rápida de intubação: analgésico para tirar a dor, sedativo para dormir, bloqueador neuromuscular para paralisar a respiração. Ela tinha uma via aérea difícil, mal dava para visualizar, mas felizmente, com os dispositivos apropriados, fizemos o procedimento adequadamente. Ao final do plantão, ela já estava admitida em UTI de referência para casos de Covid-19.

Em tempo de cuidar dos outros pacientes, tirei a paramentação e fui ver Salustiana, 56 anos, branca. Trabalhava como catadora de material reciclável e fora internada havia um dia com queimadura extensa. Vi aquele corpo frágil coberto de faixas. Ela queimou-se com álcool que usava para acender a lenha com que cozinhava em seu barraco numa comunidade vizinha ao hospital. Ela não tinha dinheiro para comprar gás de cozinha. Felizmente, o hospital do SUS de referência de cirurgia de grandes queimados tinha uma vaga para ela e aceitou a paciente prontamente.

A cena de Edwiges e Salustiana internadas na mesma unidade me revisita, sempre que emerge o falsa dicotomia entre priorizar o controle pandemia ou economia, dado que nosso povo adoece e morre em consequência de ambas as tragédias.

Daquele dia até hoje houve centenas de milhares de mortes, e aumento vertiginoso não apenas do gás de cozinha mas de diversos combustíveis e fontes de energia, além da fome e do desemprego — quantas vezes histórias como as de Edwiges e Salustiana se repetiram?

O Brasil, por culpa de suas maiores autoridades, com destaque para o presidente da República, falhou miseravelmente tanto no controle da Covid-19, quanto na gestão da economia. Em retrocessos não apenas institucionais, mas civilizatórios. Por isso, pergunto: em defesa de que manifestantes adotam uma agenda de ataques às instituições, à independência entre os Poderes da República e à própria democracia? Os que vão às ruas neste 7 de setembro em apoio ao governo Bolsonaro, o fazem a favor do descontrole da pandemia ou do colapso econômico? São favor da peste, da fome ou de ambas?

 

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O jeito de morrer uma estrela na pandemia https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/08/26/o-jeito-de-morrer-uma-estrela-na-pandemia/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/08/26/o-jeito-de-morrer-uma-estrela-na-pandemia/#respond Fri, 27 Aug 2021 02:19:24 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/Kepler-Supernova-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=119 Nos dias da chamada segunda onda de Covid-19 no Brasil, Desirée chegou à emergência trazida pelo SAMU, desacompanhada, numa tarde sem muito sol. Altiva em seus oitenta anos, com as sobrancelhas perfeitamente delineadas, envoltas a algumas rugas e manchas acastanhadas pela pele branca. Cansada, saturação de sessenta por cento, extremidades frias e azuladas, ela melhorou razoavelmente com uma máscara não reinalante e dez litros de oxigênio por minuto. A frequência respiratória ainda estava elevada mas as saturação ficou por volta de noventa.

Um quadro gripal se instalara havia uma semana, passara três dias sem conseguir sair do sofá, algo prostrada, era mais uma pessoa infectada pelo coronavírus. Morava sozinha, estava isolada. Família?  Tinha uma filha já com seus sessenta anos, mas não se visitavam nem antes da pandemia. 

Por que demorou tanto pra pedir ajuda?

Porque já sabia que ia morrer. 

Como assim? Um dia todos vamos morrer. Mas essa doença é aguda, é possível tentar tratar.

Você sabe que eu não tenho chance. Fala a verdade? Eu tenho chance?

Seu quadro é grave, mas dá pra dar remédio e tentar desinflamar o pulmão, dar oxigênio. Se precisar a gente pode intubar e levar pra unidade de terapia intensiva.

Intubar é colocar aquele tubo pela boca e ligar naquele aparelho?

Sim!

De jeito nenhum! Doutor, eu me apresentei até em Paris, eu sou uma estrela. Isso é jeito de morrer uma estrela? Com esse negócio na boca? Numa máquina dessas? Largada numa UTI que nem minha irmã? 

O que a senhora quer que eu faça?

Um guaraná! Me arruma um guaraná que eu te dou cinquenta reais. Eu só preciso de um guaraná geladinho com uma fatia de laranja!

Eu recusei a oferta, mas busquei à revelia dos protocolos, o guaraná gelado com a fatia de laranja desejado por Desirée. Na saída do pronto-socorro encontrei a sua filha.

Sua mãe está grave, com risco de morte imediato, mas estamos cuidando dela.

Quero que faça tudo! Não tem vaga de UTI?

Eu respeito seu sofrimento, mas Desisée está consciente, bem orientada, ela não autorizou que fizéssemos procedimentos invasivos, e também disse que não quer ir pra UTI.

Eu exijo! Se você não salvar minha mãe eu vou processar você, o hospital, todo mundo!

Retorno à emergência, Desirée toma o guaraná pelo canudinho com algum esforço.

Sua filha disse que vai me processar se eu não mandar a senhora pra UTI.

O quê? Eu tive doze filhos felinos e uma humana. Ela é a pior. Isso é remorso… lembrou que tem mãe? Eu não quero! Ainda mais se sair daqui dependendo dela. Minha vida foi muito boa, não queria pegar essa desgraça, mas está tudo certo!

Na saída do plantão consegui um cateter de alto-fluxo e deixei Desirée algo mais confortável. Escrevi no prontuário os desejos de Desirée e passei o caso.

No dia seguinte retornei ao hospital, mas não encontrei Desirée. Olhando para o leito vazio, lembrei Carl Sagan em Cosmos, dizendo que todos nós somos feitos de poeira de estrelas mortas. Que a vida é feita estrelas mortas. Dediquei esse pensamento à Desirée que devolvia ao universo a matéria.

Algumas semanas depois chegou uma notificação a meu respeito, direto da ouvidoria do hospital, fui chamado para tomar ciência, era da filha de Desirée.

Um bilhete, escrito com caneta tinteiro trazia a sentença:

Doutor, estou ainda abatida pela morte de minha mãe. Não tem sido fácil. Peço desculpas por ter te destratado no momento em que cuidava dela, receba essa rosa com agradecimento – até sempre. 

 

 

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A jornada do cirurgião Valdir Zamboni https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/15/a-jornada-do-cirurgiao-valdir-zamboni/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/15/a-jornada-do-cirurgiao-valdir-zamboni/#respond Wed, 16 Jun 2021 01:55:50 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/6C1D2558-974A-45D2-8CA4-1AA282A84A57-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=111 Peito de aço! Eu, interninho, ficava impressionado com o cirurgião do trauma, cabelos já cor de cinza, que falava de braços abertos, chamando atenção dos residentes. Presta atenção! Presta atenção!

Ágil e seguro na sala de emergência, capaz de abrir um tórax em segundos, a turma dizia que ele era o cirurgião do Rally dos Sertões. Pense num cara entubando um paciente traumatizado na beira de uma estrada de areia – no nada?!

Alguns anos depois, eu já formado fui aprovado em concurso para ser médico no Hospital Universitário, lá estava Valdir Zamboni, meu velho professor, agora colega de plantão no mesmo pronto-socorro: um cirurgião que gosta de operar, que não posterga, que põe na mesa. Um médico que não abandona seu paciente, um exemplo.

Durante a pandemia destacamos no pronto-socorro uma área para atender casos suspeitos de Covid-19. Lá estava eu no balcão deste distinto local quando o Zamba saiu de um consultório. Fazendo muitos senões, passou em atendimento com um colega, estava infectado pelo coronavírus, era leve no momento. Ele se despediu reclamando de leve por precisar se afastar do hospital.

Quatro dias depois disseram no grupo de WhatsApp que o homem voltou grave, e fora transferido para unidade de terapia intensiva do Hospital das Clínicas com insuficiência respiratória refratária.

Desacordado, sedado, ligado a aparelhos para respirar, permaneceu por oitenta e oito dias. A gente pedia notícia e percebia faces de pesar, a ponto de nos questionarmos se ainda veríamos nosso amigo.

Desligada a sedação, o homem não acordou por dias. O que aconteceu?

Um dia, eu passando visita no serviço de infectologia do Instituto de Rebilitação Lucy Montoro observei a ficha de um novo paciente: Valdir Zamboni.

Ao quarto, encontro o homem: usava um cateter de oxigênio com baixo fluxo. Comprimiu os olhos, me reconheceu, sorriu, e quando eu me aproximei ele chorou. Fez questão de gravar uma mensagem bonita pra nossos companheiros de trabalho. Eu vou me recuperar! Eu ainda vou voltar pro HU! Ele dizia.

Após algumas semanas o velho Zamba recebeu alta do Lucy, com uma melhora considerável e ascendente. Desde então não o via pessoalmente.

Hoje recebi notícias de Zamboni. Ele retornou ao Hospital Universitário para fazer o que Maia sabe: atender doentes, operar e ensinar aos mais jovens com seu exemplo e com suas palavras: presta atenção! Presta atenção! Viva!

 

 

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Mãe morre de Covid-19 e cede o leito ao próprio filho https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/mae-morre-de-covid-19-e-cede-o-leito-ao-proprio-filho/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/mae-morre-de-covid-19-e-cede-o-leito-ao-proprio-filho/#respond Mon, 10 May 2021 23:28:45 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Leito-vago--300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=76 Quando Maria da Conceição descobriu que esperava uma criança, a maior preocupação que lhe ocorreu foi não ter um lugar para acolher o seu filho, um quartinho certamente não seria tangível, mas quem sabe um bercinho? Assim, após muitas jornadas de trabalho, adquiriu através de crediário o berço e as roupinhas de cama, muito bonitas e arrumadinhas.

Agora Renato tem quinze anos, Maria da Conceição se preocupa desesperadamente com a capacidade de oferecer comida ao seu filho e pagar o aluguel atrasado. A pandemia consterna, já perdeu gente querida, mas não seria possível parar de trabalhar. Renato tenta, com dificuldades, acompanhar as teleaulas e joga videogame nas horas livres que passa sozinho em casa.

Maria da Conceição apresenta tosse, febre e um crescente desconforto para respirar. Renato tem sintomas semelhantes após alguns dias. A mãe pensa em procurar o hospital, mas quem cuidaria de Renato? Por isso resiste até que perde os sentidos, imediatamente seu filho chama a ambulância do SAMU.

A mulher é admitida na emergência em estado grave, a saturação de oxigênio é imensurável em suas mão frias. Precisa de intubação, cateter central, medicamento para manter a pressão arterial. Com alguma melhora, Maria da Conceição é transferida para a unidade de terapia intensiva.

Renato, alheio às estatísticas, piora progressivamente e precisa ser internado. Como não há vagas, permanece sob observação na sala de emergência. O rapaz chora quando ninguém está olhando, tanto por medo daquele ambiente hostil e da doença, mas também por não estar com sua mãe, nem ter notícias dela. É a primeira vez que são separados. Ele permanece pendurado na máscara de ventilação não invasiva, com alta fração inspirada de oxigênio. Da central de regulação, não chega sequer perspectiva de leito.

Após um choque refratário e queda persistente da oxigenação, sem conhecimento da internação de seu garoto, Maria da Conceição, após muito esforço, entrega o seu próprio leito para receber o seu filho na unidade de terapia intensiva.

** Este texto inaugura uma nova Seção neste Blog: “Cotidiano da pandemia”, inspirada na coluna “Cotidiano Imaginário” em que o médico e escritor Moacyr Scliar publicava na Folha textos de ficção baseados em notícias do jornal. O livro “Imaginário cotidiano” (Global 2001) reúne textos produzidos por Moacyr de 1996 a 2001. Aqui, compartilharemos textos ficcionais baseados em publicações em redes sociais.

“Essa semana a vaga de UTI Covid de um garoto de 15 anos só foi possível pq a mãe dele, que estava nessa vaga, faleceu no dia anterior. Ele não sabe disso, e muito menos que a mãe se foi… Ninguém está preparado para isso, ninguém! #secuide“. Publicado no twitter por @casalInfecto, perfil dos infectologistas Danilo Galvão e Tassiana Galvão.

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Dengue grave: uma parábola sobre uma doença negligenciada https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/05/01/dengue-grave-uma-parabola-sobre-uma-doenca-negligenciada/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/05/01/dengue-grave-uma-parabola-sobre-uma-doenca-negligenciada/#respond Sat, 01 May 2021 13:01:27 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/Jovem-médica-chorando-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=65 Essa é uma história de alguns anos atrás, mas poderia ser do último verão.

A interna Maria chega para o plantão noturno na emergência do hospital universitário, ela atenderia casos triados a partir da porta do pronto socorro. Primeira ficha: avalia Rute, vinte e quatro anos, assim como ela.

A paciente tem febre há dois dias, dor difusa: na cabeça, nos músculos e articulações, sem sintomas respiratórios: não é síndrome gripal. Sem alterações nos diversos aparelhos, pressão arterial e sinais vitais todos normais. A hipótese mais provável nessas latitudes é dengue, mas pode ser outras doenças virais. Após discutir com Alberto, o médico assistente, a interna recomenda Rute a procura da Unidade Básica de Saúde para coleta de sorologia de dengue e orienta sinais de alarme para retorno à emergência, reforça que a ela não deve tomar AAS ou anti-inflamatórios, só analgésicos simples e muita hidratação. Em tempo, caso o quadro não se altere, deve ser reavaliada em até 48 horas.

É uma virose! Não conseguimos distinguir exatamente qual nesta avaliação, mas vale a pena fazer teste de dengue e observar se surgem sintomas respiratórios.

Destaque meu: viroses são doenças causadas por vírus, a maioria com boa evolução em poucos dias, sem tratamentos específicos disponíveis. Algumas, entretanto, podem evoluir com formas graves, como Covid-19, influenza e dengue, por exemplo.

Judite, a irmã que acompanhava a paciente se despede olhando para baixo e repetindo para si: virose! Virose! Virose!

Dez dias depois Maria retorna ao plantão, solicitaram que atendesse uma jovem que estava abalada porque perdeu alguém da família, que tinha acabado de morrer na unidade de terapia intensiva.

Na sala de atendimento encontra uma jovem de debruçada com a cabeça encostada na mesa.

Você!

Judite! O que aconteceu?

Foi você! Minha irmã está morta e a culpa é sua. Você disse que era uma virose!

Maria respira fundo, ensaia resposta, mas não consegue falar. Respira mais fundo, procura os sentidos, palavras não surgem — só soluços e lágrimas. Assim, ela chega à sala de discussão.

O que houve?

A paciente que atendi na semana passada morreu! A irmã… a irmã dela… a irmã dela disse que a culpa é mi-nha.

Ela se encolhe e se recolhe atrás das lentes embaçadas de seus óculos, permanece parada na cadeira, atônita.

A irmã sofria seu luto imediato pela perda de Rute. Disse que no dia seguinte à avaliação no pronto socorro resolveram ir a um sítio, próximo de uma represa, acharam que ela se recuperaria longe do estresse da cidade. O exame de dengue ficou para outro momento. E a procura de serviço médico só aconteceu sete dias depois quando a irmã ficou inconsciente. No hospital da pequena cidade que lhe acolheu observaram o sangue incoagulável, a pressão muito baixa. Felizmente houve meios de transferi-la para a UTI de nosso serviço, infelizmente não foi possível reverter o seu quadro de disfunções nos diversos aparelhos e impedir a sua morte.

Judite até hoje vive seu luto. Maria retornou para suas atividades e se formou, mas refutou fazer qualquer especialidade em que tivesse contato direto com pacientes. Alberto pediu afastamento do pronto-socorro, e os mosquitos Aedes se multiplicam livremente, carregando o vírus da dengue pelos territórios em situações de urbanização caótica. Não tem vacina eficaz, não há centenas de grupos procurando tratamentos específicos. A dengue é uma doença de populações negligenciadas, não para a economia, não fecha portos, e produz mortes sobretudo nas periferias das cidades e do mundo.

 

 

 

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Pais e filhos: sobre o meu pai internado com Covid-19 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/04/15/pais-e-filhos-sobre-o-meu-pai-internado-com-covid-19/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/04/15/pais-e-filhos-sobre-o-meu-pai-internado-com-covid-19/#respond Thu, 15 Apr 2021 13:41:27 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/homem-internado-com-Covid-19-usa-cateter-de-alto-fluxo-de-O2-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=51 Estátuas e cofres. Minha filha de 6 anos me olhou nos olhos antes da saída para o hospital, ela sabe que o papai trabalha na emergência atendendo casos de Covid-19.

Papai, você vai voltar?

Papai, você vai voltar?! Eu fiquei de cócoras, mirei seus olhinhos e falei a verdade como me ocorreu: nenhum papai sabe se vai voltar quando sai de casa.

Papai, por que as pessoas morrem?

Ninguém sabe o que aconteceu. Enquanto eu atendia pessoas doentes no pronto socorro observei uma ligação não atendida de meu pai. Nesses dias, chamada perdida sempre deixa alguma angústia. Retorno. Meu pai estava com febre, tosse e algum desconforto na garganta. Síndrome gripal. Recomendei que notificasse o seu médico e solicitasse uma teleconsulta, também sugeri que fizesse um teste no dia seguinte, o terceiro do quadro. O exame confirmou: meu pai estava com Covid-19.

Nada fácil de entender. Papai ficou em isolamento domiciliar, eu projetava que ele provavelmente teria um quadro brando e  brigava com presságios ruins que apareciam a me desafiar. Tentei não dar uma de médico de meu pai. 

Um dia, na primeira olhada no celular, soube pelo Claudemir que o nosso querido Raimundo tinha morrido de Covid-19. Lembrei do homem me recebendo em sua casa no Rio Bonito em muitos sábados, eu brincava com seus filhos e tomávamos sorvete de pistache comprado de uma vizinha. Recordei também de Raimundo e Zefa dançando um forrozinho cadenciado, abraçadinhos, a tarde toda de um lado pro outro em menos de um metro de chão. Enquanto eu passava visita de controle de infecção na UTI da neonatologia desconcentrei, quando Silvia me pediu opinião sobre um antibiótico eu simplesmente não tinha ouvido o caso, estava com os olhos cheios, com meus sentimentos em Raimundo, em Zefa e em meu pai também, que estava bem até aquele momento.

Após o oitavo dia de doença meu pai teve uma piora discreta. Não precisaria de oxigênio nem de hospitalização imediata, mas no décimo terceiro dia ele ficou cansadíssimo, a saturação de oxigênio despencou e ele foi levado para uma emergência.

No serviço que meu pai procurou felizmente havia leito para internação, a princípio na enfermaria. 

Quando cheguei em casa, a minha filha me cobrou satisfações.

Posso saber onde o senhor estava que chegou tão tarde?

Estava acompanhando o caso de meu pai que foi internado com Covid.

O vovô foi internado com coronavírus? Diz a verdade! Ele está intubado?

Não, ele não estava intubado. No primeiro dia ficou com cateter com 3 litros de oxigênio, no dia seguinte teve uma piora respiratória significativa e precisou de máscara não reinalante com 10 litros de oxigênio, a médica assistente me falou sobre deixar a UTI de sobreaviso.

Chegaram notícias pesadas. O cunhado de minha tia morreu numa UPA no litoral, a tia de uma prima morreu numa UPA na Zona Leste de São Paulo, ambos aguardando vagas de terapia intensiva. 

Explica a grande fúria do mundo? Eu dei entrevista e escrevi algo sobre as falácias dos chamados tratamentos precoces e kit-Covid. Entre algumas reações negativas nas redes sociais, fanáticos testam: e se fosse seu pai? Você não daria? E se fosse seu pai? E se fosse meu pai?! Não, eu não daria e não admitiria que algum médico prescrevesse medicamento contra malária ou verme para meu pai com uma doença viral.

Dorme agora. Nesses dias carimbei uma declaração de óbito dolorida, causa básica: Covid-19. Atendemos Percival em um espaço improvisado como unidade de terapia intensiva, com recursos longe dos ideais no momento de explosão de casos. Percival morreu. Mesma idade de meu pai. Quando dei a notícia no espaço ecumênico do hospital as filhas entraram em prantos.

Meu pai era um idoso forte e saudável, cuidava dos netos, era o centro da família. Morrer assim?! Morrer por isso?! A filha mais velha falava rápido tentando se conectar com suas ideias, a mais nova só soluçava. Eu olhei para interna que me acompanhava, Joana estava consternada,  mais intensamente quando as filhas agradeceram por tudo o que fizemos, e nós tínhamos ideia de que em uma estrutura ideal possivelmente podíamos ter feito mais, provavelmente não alteraria o desfecho, mesmo assim nos frustramos e choramos com as órfãs.

Estou com medo. Nos dias seguintes o quadro de meu pai se mantinha grave do ponto de vista respiratório, porém sem alterações nos demais aparelhos. Era esperar o pulmão desinflamar.

Quero colo. Depois de uma semana de internação, quando parecia não haver mais novidades, o meu pai teve uma mudança no quadro. Felizmente começou a melhorar e usar menos oxigênio a cada dia. No segundo sábado após sua internação eu fui buscá-lo. Alta hospitalar. Com algum cansaço ao se esforçar e com os olhos brilhando ele disse: filho eu te amo. Painho eu te amo. Vocês precisavam ver a cara de rapazinho apaixonado que ele fez quando reencontrou a minha mãe no saguão do hospital!

São meus filhos que tomam conta de mim. As crianças dançaram, pularam e gritaram quando souberam que o vovô estava de alta. Lembrei de quando eu falei para minha filha, a Menina Mais Velha, quando ela me perguntou por que as pessoas morrem. Tudo o que faz parte de seu corpinho e de meu corpo já estava nesse mundo desde a formação do planeta. Nós somos feitos, essencialmente, de pedaços de carbono e de amor. Só existimos porque outros seres vivos morreram e nos permitiram usar o carbono que estava em seus corpos, um dia precisamos devolver esses elementos para a natureza, assim, outras formas de vida surgirão com essas partes de nós. O amor permanece. Posso dormir aqui com vocês? Ela dormiu bem no meu peito, perguntando se poderia ser um passarinho ou cachorrinho e sorriu levinha quando eu disse que sim. Eu permaneci pensando nas mortes evitáveis da pandemia, embora não duvide do propósito da sentença apresentada.

É preciso amar. Pensei nos últimos dias que eu poderia receber uma declaração de óbito como as que tive que carimbar, assinar e distribuir. Meu pai voltou! Eu sou profundamente grato a cada pessoa que participou de seu cuidado. Agora imagino nós dois de cabelos grisalhos, assistindo jogos do São Paulo, abraçados como não temos podido estar nos últimos tempos. 

Lamento profundamente por todos os que perderam seus pais e seus amores nesse tempo de pandemia, para o vírus ou para as mentiras. 

Em nome de Zefa, Paulo, Renê e toda a família de meu amigo Raimundo, apresento meus sentimentos a cada uma das pessoas que perderam seus amores mortos com Covid-19 e não tiveram sequer a possibilidade de despedida.

(Esse texto tem trechos da letra de “Pais e filhos” de autoria de Renato Russo)

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