Linha de frente https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br É no hospital que as histórias de vida começam e terminam Sat, 25 Dec 2021 12:45:44 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O jeito de morrer uma estrela na pandemia https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/08/26/o-jeito-de-morrer-uma-estrela-na-pandemia/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/08/26/o-jeito-de-morrer-uma-estrela-na-pandemia/#respond Fri, 27 Aug 2021 02:19:24 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/Kepler-Supernova-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=119 Nos dias da chamada segunda onda de Covid-19 no Brasil, Desirée chegou à emergência trazida pelo SAMU, desacompanhada, numa tarde sem muito sol. Altiva em seus oitenta anos, com as sobrancelhas perfeitamente delineadas, envoltas a algumas rugas e manchas acastanhadas pela pele branca. Cansada, saturação de sessenta por cento, extremidades frias e azuladas, ela melhorou razoavelmente com uma máscara não reinalante e dez litros de oxigênio por minuto. A frequência respiratória ainda estava elevada mas as saturação ficou por volta de noventa.

Um quadro gripal se instalara havia uma semana, passara três dias sem conseguir sair do sofá, algo prostrada, era mais uma pessoa infectada pelo coronavírus. Morava sozinha, estava isolada. Família?  Tinha uma filha já com seus sessenta anos, mas não se visitavam nem antes da pandemia. 

Por que demorou tanto pra pedir ajuda?

Porque já sabia que ia morrer. 

Como assim? Um dia todos vamos morrer. Mas essa doença é aguda, é possível tentar tratar.

Você sabe que eu não tenho chance. Fala a verdade? Eu tenho chance?

Seu quadro é grave, mas dá pra dar remédio e tentar desinflamar o pulmão, dar oxigênio. Se precisar a gente pode intubar e levar pra unidade de terapia intensiva.

Intubar é colocar aquele tubo pela boca e ligar naquele aparelho?

Sim!

De jeito nenhum! Doutor, eu me apresentei até em Paris, eu sou uma estrela. Isso é jeito de morrer uma estrela? Com esse negócio na boca? Numa máquina dessas? Largada numa UTI que nem minha irmã? 

O que a senhora quer que eu faça?

Um guaraná! Me arruma um guaraná que eu te dou cinquenta reais. Eu só preciso de um guaraná geladinho com uma fatia de laranja!

Eu recusei a oferta, mas busquei à revelia dos protocolos, o guaraná gelado com a fatia de laranja desejado por Desirée. Na saída do pronto-socorro encontrei a sua filha.

Sua mãe está grave, com risco de morte imediato, mas estamos cuidando dela.

Quero que faça tudo! Não tem vaga de UTI?

Eu respeito seu sofrimento, mas Desisée está consciente, bem orientada, ela não autorizou que fizéssemos procedimentos invasivos, e também disse que não quer ir pra UTI.

Eu exijo! Se você não salvar minha mãe eu vou processar você, o hospital, todo mundo!

Retorno à emergência, Desirée toma o guaraná pelo canudinho com algum esforço.

Sua filha disse que vai me processar se eu não mandar a senhora pra UTI.

O quê? Eu tive doze filhos felinos e uma humana. Ela é a pior. Isso é remorso… lembrou que tem mãe? Eu não quero! Ainda mais se sair daqui dependendo dela. Minha vida foi muito boa, não queria pegar essa desgraça, mas está tudo certo!

Na saída do plantão consegui um cateter de alto-fluxo e deixei Desirée algo mais confortável. Escrevi no prontuário os desejos de Desirée e passei o caso.

No dia seguinte retornei ao hospital, mas não encontrei Desirée. Olhando para o leito vazio, lembrei Carl Sagan em Cosmos, dizendo que todos nós somos feitos de poeira de estrelas mortas. Que a vida é feita estrelas mortas. Dediquei esse pensamento à Desirée que devolvia ao universo a matéria.

Algumas semanas depois chegou uma notificação a meu respeito, direto da ouvidoria do hospital, fui chamado para tomar ciência, era da filha de Desirée.

Um bilhete, escrito com caneta tinteiro trazia a sentença:

Doutor, estou ainda abatida pela morte de minha mãe. Não tem sido fácil. Peço desculpas por ter te destratado no momento em que cuidava dela, receba essa rosa com agradecimento – até sempre. 

 

 

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Uma história sobre o retorno de doenças imunopreveníveis https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/05/uma-historia-sobre-hesitacao-vacinal/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/05/uma-historia-sobre-hesitacao-vacinal/#respond Sat, 05 Jun 2021 08:49:12 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/Captura-de-Tela-2021-06-05-às-05.38.49-300x215.png https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=99 Neste 5 de junho as unidades de saúde de São Paulo estarão abertas para vacinação contra a Covid-19, o objetivo é vacinar quem recebeu a primeira mas perdeu a segunda dose: somam-se mais de meio milhão de pessoas nesta condição, apenas neste estado.

Durante a pandemia, a hesitação vacinal cresce e as taxas de imunização caem com a disseminação de desinformações, como as autoridades que divulgam inverdades sobre a falta de segurança dos produtos oferecidos no Brasil, ultrapassando os limites da racionalidade quando um Senador da República perguntou ao diretor do Instituto Butantã se a Coronavac seria feita de “células de fetos abortados”, sendo prontamente esclarecido sobre o seu absurdo.

Considerei razoável contar uma história sobre outra doença imunoprevenível já erradicada, mas reintroduzida no Brasil nos últimos anos.

Um homem jovem com seus trinta e poucos anos, de rosto muito avermelhando e pele descascando comparece à consulta, vem acompanhado de uma mulher mais experiente.

Minha mãe pode entrar?

Claro que pode.

Ele se acomoda bem em minha frente, ela ajeita a cadeira no segundo plano. Enquanto ele narra a história de seu adoecimento, ela mantem o pescoço e olhos firmes me examinando.

Sarampo! O paciente já sabia o seu diagnóstico. Qual seria, então, o motivo da consulta?

É preciso saber, doutor, como depois de trinta anos foi aparecer esse sarampo?!

Então, nós tivemos o sarampo erradicado no Brasil em 2016, infelizmente a cobertura vacinal foi caindo, sabe como é? Tem gente que não se vacina! Além de ter muito posto fechado no país a fora com falta de verba e de equipe, tem muitas fakenews. Aí o vírus volta a circular. Mesmo a vacina tendo eficácia de 97% algumas pessoas vacinadas acabam sendo infectadas quando tem surtos.

O rapaz olha o chão, olha a janela, olha a mãe.

Sabe o que é, doutor? Eu criei meu filho longe dessas coisas artificiais da sociedade de consumo.

Como?

Essas doutrinações! O senhor sabia que as vacinas são perigosas. Essa do sarampo mesmo pode provocar problemas seríssimos!

Ele nunca tomou vacinas?

Só quando era bem pequeno, meses. Depois nos livramos!

A senhora sabia que sarampo pode dar pneumonia grave e infecção no sistema nervoso?

Recebo um olhar desafiador de minha interlocutora.

O pior são as coisas artificiais que as pessoas injetam umas nas outras! O senhor aceita uma indicação de um livro muito sério, de uma cientista muito renomada, sobre os perigos das vacinas?

Eu gostaria de falar que a vacina contra o sarampo reduziu em 84% as mortes pela doença ao ano no mundo. Que só neste século XXI mais de 20 milhões de vidas já foram salvas apenas por esta vacina, que a maior prova de que a imunização protege ela tinha em seu filho infectado, mas ficou para outra ocasião.

Ele com o gesto consternado e ela triunfante se despediram elegantemente e saíram da sala. A mãe voltou com metade do corpo porta adentro e falou comigo, algo sussurrante.

O senhor precisa se atualizar! Estar aberto a novas ideias! Vou mandar algumas referências para o seu email, permite?

Bom final de semana!

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