Linha de frente https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br É no hospital que as histórias de vida começam e terminam Sat, 25 Dec 2021 12:45:44 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Manifestações a favor do descontrole da pandemia e do colapso econômico https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/07/manifestacoes-a-favor-do-descontrole-da-pandemia-e-do-colapso-economico/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/07/manifestacoes-a-favor-do-descontrole-da-pandemia-e-do-colapso-economico/#respond Tue, 07 Sep 2021 17:29:37 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/Protesto-bolsonarista-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=62 Um dos primeiros casos graves de Covid-19 que atendi, ainda em março de 2020, foi o de Edwiges, 44, negra. Ela trabalhava como cuidadora de idosos e estava na residência dos patrões num bairro rico, quando foi resgatada pela equipe do Samu, já em insuficiência respiratória.

A imagem da tomografia de tórax com pneumonia bilateral, foi suficiente para deixá-la em isolamento respiratório e para justificar a coleta do RT-PCR para o Sars-CoV-2. Eu solicitei transferência para uma UTI destacada para pessoas infectadas pelo coronavírus, mas ela não aguentaria aguardar sem ser intubada.  Expliquei o procedimento e ela assentiu com a cabeça, respirando rápido e superficialmente, mesmo com máscara de oxigênio com reservatório.

O fisioterapeuta, o enfermeiro e eu formamos um triângulo em volta da paciente. Bem posicionada, tudo checado. Sequencia rápida de intubação: analgésico para tirar a dor, sedativo para dormir, bloqueador neuromuscular para paralisar a respiração. Ela tinha uma via aérea difícil, mal dava para visualizar, mas felizmente, com os dispositivos apropriados, fizemos o procedimento adequadamente. Ao final do plantão, ela já estava admitida em UTI de referência para casos de Covid-19.

Em tempo de cuidar dos outros pacientes, tirei a paramentação e fui ver Salustiana, 56 anos, branca. Trabalhava como catadora de material reciclável e fora internada havia um dia com queimadura extensa. Vi aquele corpo frágil coberto de faixas. Ela queimou-se com álcool que usava para acender a lenha com que cozinhava em seu barraco numa comunidade vizinha ao hospital. Ela não tinha dinheiro para comprar gás de cozinha. Felizmente, o hospital do SUS de referência de cirurgia de grandes queimados tinha uma vaga para ela e aceitou a paciente prontamente.

A cena de Edwiges e Salustiana internadas na mesma unidade me revisita, sempre que emerge o falsa dicotomia entre priorizar o controle pandemia ou economia, dado que nosso povo adoece e morre em consequência de ambas as tragédias.

Daquele dia até hoje houve centenas de milhares de mortes, e aumento vertiginoso não apenas do gás de cozinha mas de diversos combustíveis e fontes de energia, além da fome e do desemprego — quantas vezes histórias como as de Edwiges e Salustiana se repetiram?

O Brasil, por culpa de suas maiores autoridades, com destaque para o presidente da República, falhou miseravelmente tanto no controle da Covid-19, quanto na gestão da economia. Em retrocessos não apenas institucionais, mas civilizatórios. Por isso, pergunto: em defesa de que manifestantes adotam uma agenda de ataques às instituições, à independência entre os Poderes da República e à própria democracia? Os que vão às ruas neste 7 de setembro em apoio ao governo Bolsonaro, o fazem a favor do descontrole da pandemia ou do colapso econômico? São favor da peste, da fome ou de ambas?

 

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O jeito de morrer uma estrela na pandemia https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/08/26/o-jeito-de-morrer-uma-estrela-na-pandemia/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/08/26/o-jeito-de-morrer-uma-estrela-na-pandemia/#respond Fri, 27 Aug 2021 02:19:24 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/Kepler-Supernova-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=119 Nos dias da chamada segunda onda de Covid-19 no Brasil, Desirée chegou à emergência trazida pelo SAMU, desacompanhada, numa tarde sem muito sol. Altiva em seus oitenta anos, com as sobrancelhas perfeitamente delineadas, envoltas a algumas rugas e manchas acastanhadas pela pele branca. Cansada, saturação de sessenta por cento, extremidades frias e azuladas, ela melhorou razoavelmente com uma máscara não reinalante e dez litros de oxigênio por minuto. A frequência respiratória ainda estava elevada mas as saturação ficou por volta de noventa.

Um quadro gripal se instalara havia uma semana, passara três dias sem conseguir sair do sofá, algo prostrada, era mais uma pessoa infectada pelo coronavírus. Morava sozinha, estava isolada. Família?  Tinha uma filha já com seus sessenta anos, mas não se visitavam nem antes da pandemia. 

Por que demorou tanto pra pedir ajuda?

Porque já sabia que ia morrer. 

Como assim? Um dia todos vamos morrer. Mas essa doença é aguda, é possível tentar tratar.

Você sabe que eu não tenho chance. Fala a verdade? Eu tenho chance?

Seu quadro é grave, mas dá pra dar remédio e tentar desinflamar o pulmão, dar oxigênio. Se precisar a gente pode intubar e levar pra unidade de terapia intensiva.

Intubar é colocar aquele tubo pela boca e ligar naquele aparelho?

Sim!

De jeito nenhum! Doutor, eu me apresentei até em Paris, eu sou uma estrela. Isso é jeito de morrer uma estrela? Com esse negócio na boca? Numa máquina dessas? Largada numa UTI que nem minha irmã? 

O que a senhora quer que eu faça?

Um guaraná! Me arruma um guaraná que eu te dou cinquenta reais. Eu só preciso de um guaraná geladinho com uma fatia de laranja!

Eu recusei a oferta, mas busquei à revelia dos protocolos, o guaraná gelado com a fatia de laranja desejado por Desirée. Na saída do pronto-socorro encontrei a sua filha.

Sua mãe está grave, com risco de morte imediato, mas estamos cuidando dela.

Quero que faça tudo! Não tem vaga de UTI?

Eu respeito seu sofrimento, mas Desisée está consciente, bem orientada, ela não autorizou que fizéssemos procedimentos invasivos, e também disse que não quer ir pra UTI.

Eu exijo! Se você não salvar minha mãe eu vou processar você, o hospital, todo mundo!

Retorno à emergência, Desirée toma o guaraná pelo canudinho com algum esforço.

Sua filha disse que vai me processar se eu não mandar a senhora pra UTI.

O quê? Eu tive doze filhos felinos e uma humana. Ela é a pior. Isso é remorso… lembrou que tem mãe? Eu não quero! Ainda mais se sair daqui dependendo dela. Minha vida foi muito boa, não queria pegar essa desgraça, mas está tudo certo!

Na saída do plantão consegui um cateter de alto-fluxo e deixei Desirée algo mais confortável. Escrevi no prontuário os desejos de Desirée e passei o caso.

No dia seguinte retornei ao hospital, mas não encontrei Desirée. Olhando para o leito vazio, lembrei Carl Sagan em Cosmos, dizendo que todos nós somos feitos de poeira de estrelas mortas. Que a vida é feita estrelas mortas. Dediquei esse pensamento à Desirée que devolvia ao universo a matéria.

Algumas semanas depois chegou uma notificação a meu respeito, direto da ouvidoria do hospital, fui chamado para tomar ciência, era da filha de Desirée.

Um bilhete, escrito com caneta tinteiro trazia a sentença:

Doutor, estou ainda abatida pela morte de minha mãe. Não tem sido fácil. Peço desculpas por ter te destratado no momento em que cuidava dela, receba essa rosa com agradecimento – até sempre. 

 

 

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A jornada do cirurgião Valdir Zamboni https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/15/a-jornada-do-cirurgiao-valdir-zamboni/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/15/a-jornada-do-cirurgiao-valdir-zamboni/#respond Wed, 16 Jun 2021 01:55:50 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/6C1D2558-974A-45D2-8CA4-1AA282A84A57-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=111 Peito de aço! Eu, interninho, ficava impressionado com o cirurgião do trauma, cabelos já cor de cinza, que falava de braços abertos, chamando atenção dos residentes. Presta atenção! Presta atenção!

Ágil e seguro na sala de emergência, capaz de abrir um tórax em segundos, a turma dizia que ele era o cirurgião do Rally dos Sertões. Pense num cara entubando um paciente traumatizado na beira de uma estrada de areia – no nada?!

Alguns anos depois, eu já formado fui aprovado em concurso para ser médico no Hospital Universitário, lá estava Valdir Zamboni, meu velho professor, agora colega de plantão no mesmo pronto-socorro: um cirurgião que gosta de operar, que não posterga, que põe na mesa. Um médico que não abandona seu paciente, um exemplo.

Durante a pandemia destacamos no pronto-socorro uma área para atender casos suspeitos de Covid-19. Lá estava eu no balcão deste distinto local quando o Zamba saiu de um consultório. Fazendo muitos senões, passou em atendimento com um colega, estava infectado pelo coronavírus, era leve no momento. Ele se despediu reclamando de leve por precisar se afastar do hospital.

Quatro dias depois disseram no grupo de WhatsApp que o homem voltou grave, e fora transferido para unidade de terapia intensiva do Hospital das Clínicas com insuficiência respiratória refratária.

Desacordado, sedado, ligado a aparelhos para respirar, permaneceu por oitenta e oito dias. A gente pedia notícia e percebia faces de pesar, a ponto de nos questionarmos se ainda veríamos nosso amigo.

Desligada a sedação, o homem não acordou por dias. O que aconteceu?

Um dia, eu passando visita no serviço de infectologia do Instituto de Rebilitação Lucy Montoro observei a ficha de um novo paciente: Valdir Zamboni.

Ao quarto, encontro o homem: usava um cateter de oxigênio com baixo fluxo. Comprimiu os olhos, me reconheceu, sorriu, e quando eu me aproximei ele chorou. Fez questão de gravar uma mensagem bonita pra nossos companheiros de trabalho. Eu vou me recuperar! Eu ainda vou voltar pro HU! Ele dizia.

Após algumas semanas o velho Zamba recebeu alta do Lucy, com uma melhora considerável e ascendente. Desde então não o via pessoalmente.

Hoje recebi notícias de Zamboni. Ele retornou ao Hospital Universitário para fazer o que Maia sabe: atender doentes, operar e ensinar aos mais jovens com seu exemplo e com suas palavras: presta atenção! Presta atenção! Viva!

 

 

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Um casal de namorados na emergência respiratória https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/12/um-casal-de-namorados-na-emergencia-respiratoria/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/12/um-casal-de-namorados-na-emergencia-respiratoria/#respond Sat, 12 Jun 2021 23:03:52 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/Eugenio-Zampighi--300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=107 Um casal de namorados chega ao pronto-socorro de ambulância.

A enfermeira do SAMU, algo tensa, se aproxima para fazer a passagem do caso.

Suspeita de Covid! Chamado por falta de ar. Homem de oitenta e dois anos, na cena a saturação de oxigênio estava 47%.

Na maca vejo um senhor simpaticão de cabelo acaju, apesar do esforço respiratório, mesmo com uma máscara, ele sorri encarando uma distinta senhora de cabelos dourados e vestido elegante, o flerte chama a atenção dada a situação. 

Para sala de emergência. Monitoramos o homem, colocamos uma máscara não reinalante com reservatório de oxigênio. O esforço respiratório persiste. É melhor pegar a história com a acompanhante.

Bom dia, eu sou o médico responsável pelo caso do seu Alfredo, a senhora pode dizer o que aconteceu?

Doutor, esse homem tava muito solitário e acabou mudando pra minha casa pra passar a pandemia.

Ele tem alguma doença?

Não!

Ele precisa de ajuda pra alguma atividade diária?

Isso é danado!

Quando ele adoeceu?

Tem uns dez dias, começou com um resfriado. Dei chá! Mas tem uns três dias que piorou! Já pelejei pra trazer esse homem! Não queria… agora, morrendo… não levantou hoje, chamei o socorro.

Posso passar um parecer?

Sim!

Alfredo está muito grave, faltando oxigênio! Precisamos sedar e intubar. A senhora sabe o que isso significa?

Sei sim!  Tem chance de morrer?

Infelizmente sim.

Vixe! Será que não era bom avisar a esposa dele?

A senhora?

Eu tava quieta! A mulher dele é aquele tipo de pessoa possessiva… tratava ele mal. Pediu pra vir pra minha casa e eu acolhi, ué. Se o senhor quiser eu tenho o número dela. Só não vou ligar…

Vou perguntar pra ele, é melhor.

Seu Alfredo! Seu Alfredo! Nós vamos precisar intubar o senhor. O senhor sabe o que é isso?

S i m! F a ç a  o  q u e  p r e c i s a r,  d o u t o r!

O senhor deseja que a gente avise sua mulher?

A  D o r o t e i a?

Sua esposa e seus filhos…

A q u e l e s  n ã o! P o d e  d i z e r  p r a  e s s a  a í! F a z  f a v o r? – mira meus olhos.

D i z   p r a  D o r o t e i a  q u e  e l a  s i m  é  a  m u i é  d e  m i n h a  v i d a! Enquanto sussurra fecha os olhos com efeito do fentanil.

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Uma história sobre o retorno de doenças imunopreveníveis https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/05/uma-historia-sobre-hesitacao-vacinal/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/05/uma-historia-sobre-hesitacao-vacinal/#respond Sat, 05 Jun 2021 08:49:12 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/Captura-de-Tela-2021-06-05-às-05.38.49-300x215.png https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=99 Neste 5 de junho as unidades de saúde de São Paulo estarão abertas para vacinação contra a Covid-19, o objetivo é vacinar quem recebeu a primeira mas perdeu a segunda dose: somam-se mais de meio milhão de pessoas nesta condição, apenas neste estado.

Durante a pandemia, a hesitação vacinal cresce e as taxas de imunização caem com a disseminação de desinformações, como as autoridades que divulgam inverdades sobre a falta de segurança dos produtos oferecidos no Brasil, ultrapassando os limites da racionalidade quando um Senador da República perguntou ao diretor do Instituto Butantã se a Coronavac seria feita de “células de fetos abortados”, sendo prontamente esclarecido sobre o seu absurdo.

Considerei razoável contar uma história sobre outra doença imunoprevenível já erradicada, mas reintroduzida no Brasil nos últimos anos.

Um homem jovem com seus trinta e poucos anos, de rosto muito avermelhando e pele descascando comparece à consulta, vem acompanhado de uma mulher mais experiente.

Minha mãe pode entrar?

Claro que pode.

Ele se acomoda bem em minha frente, ela ajeita a cadeira no segundo plano. Enquanto ele narra a história de seu adoecimento, ela mantem o pescoço e olhos firmes me examinando.

Sarampo! O paciente já sabia o seu diagnóstico. Qual seria, então, o motivo da consulta?

É preciso saber, doutor, como depois de trinta anos foi aparecer esse sarampo?!

Então, nós tivemos o sarampo erradicado no Brasil em 2016, infelizmente a cobertura vacinal foi caindo, sabe como é? Tem gente que não se vacina! Além de ter muito posto fechado no país a fora com falta de verba e de equipe, tem muitas fakenews. Aí o vírus volta a circular. Mesmo a vacina tendo eficácia de 97% algumas pessoas vacinadas acabam sendo infectadas quando tem surtos.

O rapaz olha o chão, olha a janela, olha a mãe.

Sabe o que é, doutor? Eu criei meu filho longe dessas coisas artificiais da sociedade de consumo.

Como?

Essas doutrinações! O senhor sabia que as vacinas são perigosas. Essa do sarampo mesmo pode provocar problemas seríssimos!

Ele nunca tomou vacinas?

Só quando era bem pequeno, meses. Depois nos livramos!

A senhora sabia que sarampo pode dar pneumonia grave e infecção no sistema nervoso?

Recebo um olhar desafiador de minha interlocutora.

O pior são as coisas artificiais que as pessoas injetam umas nas outras! O senhor aceita uma indicação de um livro muito sério, de uma cientista muito renomada, sobre os perigos das vacinas?

Eu gostaria de falar que a vacina contra o sarampo reduziu em 84% as mortes pela doença ao ano no mundo. Que só neste século XXI mais de 20 milhões de vidas já foram salvas apenas por esta vacina, que a maior prova de que a imunização protege ela tinha em seu filho infectado, mas ficou para outra ocasião.

Ele com o gesto consternado e ela triunfante se despediram elegantemente e saíram da sala. A mãe voltou com metade do corpo porta adentro e falou comigo, algo sussurrante.

O senhor precisa se atualizar! Estar aberto a novas ideias! Vou mandar algumas referências para o seu email, permite?

Bom final de semana!

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Mãe morre de Covid-19 e cede o leito ao próprio filho https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/mae-morre-de-covid-19-e-cede-o-leito-ao-proprio-filho/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/mae-morre-de-covid-19-e-cede-o-leito-ao-proprio-filho/#respond Mon, 10 May 2021 23:28:45 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Leito-vago--300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=76 Quando Maria da Conceição descobriu que esperava uma criança, a maior preocupação que lhe ocorreu foi não ter um lugar para acolher o seu filho, um quartinho certamente não seria tangível, mas quem sabe um bercinho? Assim, após muitas jornadas de trabalho, adquiriu através de crediário o berço e as roupinhas de cama, muito bonitas e arrumadinhas.

Agora Renato tem quinze anos, Maria da Conceição se preocupa desesperadamente com a capacidade de oferecer comida ao seu filho e pagar o aluguel atrasado. A pandemia consterna, já perdeu gente querida, mas não seria possível parar de trabalhar. Renato tenta, com dificuldades, acompanhar as teleaulas e joga videogame nas horas livres que passa sozinho em casa.

Maria da Conceição apresenta tosse, febre e um crescente desconforto para respirar. Renato tem sintomas semelhantes após alguns dias. A mãe pensa em procurar o hospital, mas quem cuidaria de Renato? Por isso resiste até que perde os sentidos, imediatamente seu filho chama a ambulância do SAMU.

A mulher é admitida na emergência em estado grave, a saturação de oxigênio é imensurável em suas mão frias. Precisa de intubação, cateter central, medicamento para manter a pressão arterial. Com alguma melhora, Maria da Conceição é transferida para a unidade de terapia intensiva.

Renato, alheio às estatísticas, piora progressivamente e precisa ser internado. Como não há vagas, permanece sob observação na sala de emergência. O rapaz chora quando ninguém está olhando, tanto por medo daquele ambiente hostil e da doença, mas também por não estar com sua mãe, nem ter notícias dela. É a primeira vez que são separados. Ele permanece pendurado na máscara de ventilação não invasiva, com alta fração inspirada de oxigênio. Da central de regulação, não chega sequer perspectiva de leito.

Após um choque refratário e queda persistente da oxigenação, sem conhecimento da internação de seu garoto, Maria da Conceição, após muito esforço, entrega o seu próprio leito para receber o seu filho na unidade de terapia intensiva.

** Este texto inaugura uma nova Seção neste Blog: “Cotidiano da pandemia”, inspirada na coluna “Cotidiano Imaginário” em que o médico e escritor Moacyr Scliar publicava na Folha textos de ficção baseados em notícias do jornal. O livro “Imaginário cotidiano” (Global 2001) reúne textos produzidos por Moacyr de 1996 a 2001. Aqui, compartilharemos textos ficcionais baseados em publicações em redes sociais.

“Essa semana a vaga de UTI Covid de um garoto de 15 anos só foi possível pq a mãe dele, que estava nessa vaga, faleceu no dia anterior. Ele não sabe disso, e muito menos que a mãe se foi… Ninguém está preparado para isso, ninguém! #secuide“. Publicado no twitter por @casalInfecto, perfil dos infectologistas Danilo Galvão e Tassiana Galvão.

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Dengue grave: uma parábola sobre uma doença negligenciada https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/05/01/dengue-grave-uma-parabola-sobre-uma-doenca-negligenciada/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/05/01/dengue-grave-uma-parabola-sobre-uma-doenca-negligenciada/#respond Sat, 01 May 2021 13:01:27 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/Jovem-médica-chorando-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=65 Essa é uma história de alguns anos atrás, mas poderia ser do último verão.

A interna Maria chega para o plantão noturno na emergência do hospital universitário, ela atenderia casos triados a partir da porta do pronto socorro. Primeira ficha: avalia Rute, vinte e quatro anos, assim como ela.

A paciente tem febre há dois dias, dor difusa: na cabeça, nos músculos e articulações, sem sintomas respiratórios: não é síndrome gripal. Sem alterações nos diversos aparelhos, pressão arterial e sinais vitais todos normais. A hipótese mais provável nessas latitudes é dengue, mas pode ser outras doenças virais. Após discutir com Alberto, o médico assistente, a interna recomenda Rute a procura da Unidade Básica de Saúde para coleta de sorologia de dengue e orienta sinais de alarme para retorno à emergência, reforça que a ela não deve tomar AAS ou anti-inflamatórios, só analgésicos simples e muita hidratação. Em tempo, caso o quadro não se altere, deve ser reavaliada em até 48 horas.

É uma virose! Não conseguimos distinguir exatamente qual nesta avaliação, mas vale a pena fazer teste de dengue e observar se surgem sintomas respiratórios.

Destaque meu: viroses são doenças causadas por vírus, a maioria com boa evolução em poucos dias, sem tratamentos específicos disponíveis. Algumas, entretanto, podem evoluir com formas graves, como Covid-19, influenza e dengue, por exemplo.

Judite, a irmã que acompanhava a paciente se despede olhando para baixo e repetindo para si: virose! Virose! Virose!

Dez dias depois Maria retorna ao plantão, solicitaram que atendesse uma jovem que estava abalada porque perdeu alguém da família, que tinha acabado de morrer na unidade de terapia intensiva.

Na sala de atendimento encontra uma jovem de debruçada com a cabeça encostada na mesa.

Você!

Judite! O que aconteceu?

Foi você! Minha irmã está morta e a culpa é sua. Você disse que era uma virose!

Maria respira fundo, ensaia resposta, mas não consegue falar. Respira mais fundo, procura os sentidos, palavras não surgem — só soluços e lágrimas. Assim, ela chega à sala de discussão.

O que houve?

A paciente que atendi na semana passada morreu! A irmã… a irmã dela… a irmã dela disse que a culpa é mi-nha.

Ela se encolhe e se recolhe atrás das lentes embaçadas de seus óculos, permanece parada na cadeira, atônita.

A irmã sofria seu luto imediato pela perda de Rute. Disse que no dia seguinte à avaliação no pronto socorro resolveram ir a um sítio, próximo de uma represa, acharam que ela se recuperaria longe do estresse da cidade. O exame de dengue ficou para outro momento. E a procura de serviço médico só aconteceu sete dias depois quando a irmã ficou inconsciente. No hospital da pequena cidade que lhe acolheu observaram o sangue incoagulável, a pressão muito baixa. Felizmente houve meios de transferi-la para a UTI de nosso serviço, infelizmente não foi possível reverter o seu quadro de disfunções nos diversos aparelhos e impedir a sua morte.

Judite até hoje vive seu luto. Maria retornou para suas atividades e se formou, mas refutou fazer qualquer especialidade em que tivesse contato direto com pacientes. Alberto pediu afastamento do pronto-socorro, e os mosquitos Aedes se multiplicam livremente, carregando o vírus da dengue pelos territórios em situações de urbanização caótica. Não tem vacina eficaz, não há centenas de grupos procurando tratamentos específicos. A dengue é uma doença de populações negligenciadas, não para a economia, não fecha portos, e produz mortes sobretudo nas periferias das cidades e do mundo.

 

 

 

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Pais e filhos: sobre o meu pai internado com Covid-19 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/04/15/pais-e-filhos-sobre-o-meu-pai-internado-com-covid-19/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/04/15/pais-e-filhos-sobre-o-meu-pai-internado-com-covid-19/#respond Thu, 15 Apr 2021 13:41:27 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/homem-internado-com-Covid-19-usa-cateter-de-alto-fluxo-de-O2-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=51 Estátuas e cofres. Minha filha de 6 anos me olhou nos olhos antes da saída para o hospital, ela sabe que o papai trabalha na emergência atendendo casos de Covid-19.

Papai, você vai voltar?

Papai, você vai voltar?! Eu fiquei de cócoras, mirei seus olhinhos e falei a verdade como me ocorreu: nenhum papai sabe se vai voltar quando sai de casa.

Papai, por que as pessoas morrem?

Ninguém sabe o que aconteceu. Enquanto eu atendia pessoas doentes no pronto socorro observei uma ligação não atendida de meu pai. Nesses dias, chamada perdida sempre deixa alguma angústia. Retorno. Meu pai estava com febre, tosse e algum desconforto na garganta. Síndrome gripal. Recomendei que notificasse o seu médico e solicitasse uma teleconsulta, também sugeri que fizesse um teste no dia seguinte, o terceiro do quadro. O exame confirmou: meu pai estava com Covid-19.

Nada fácil de entender. Papai ficou em isolamento domiciliar, eu projetava que ele provavelmente teria um quadro brando e  brigava com presságios ruins que apareciam a me desafiar. Tentei não dar uma de médico de meu pai. 

Um dia, na primeira olhada no celular, soube pelo Claudemir que o nosso querido Raimundo tinha morrido de Covid-19. Lembrei do homem me recebendo em sua casa no Rio Bonito em muitos sábados, eu brincava com seus filhos e tomávamos sorvete de pistache comprado de uma vizinha. Recordei também de Raimundo e Zefa dançando um forrozinho cadenciado, abraçadinhos, a tarde toda de um lado pro outro em menos de um metro de chão. Enquanto eu passava visita de controle de infecção na UTI da neonatologia desconcentrei, quando Silvia me pediu opinião sobre um antibiótico eu simplesmente não tinha ouvido o caso, estava com os olhos cheios, com meus sentimentos em Raimundo, em Zefa e em meu pai também, que estava bem até aquele momento.

Após o oitavo dia de doença meu pai teve uma piora discreta. Não precisaria de oxigênio nem de hospitalização imediata, mas no décimo terceiro dia ele ficou cansadíssimo, a saturação de oxigênio despencou e ele foi levado para uma emergência.

No serviço que meu pai procurou felizmente havia leito para internação, a princípio na enfermaria. 

Quando cheguei em casa, a minha filha me cobrou satisfações.

Posso saber onde o senhor estava que chegou tão tarde?

Estava acompanhando o caso de meu pai que foi internado com Covid.

O vovô foi internado com coronavírus? Diz a verdade! Ele está intubado?

Não, ele não estava intubado. No primeiro dia ficou com cateter com 3 litros de oxigênio, no dia seguinte teve uma piora respiratória significativa e precisou de máscara não reinalante com 10 litros de oxigênio, a médica assistente me falou sobre deixar a UTI de sobreaviso.

Chegaram notícias pesadas. O cunhado de minha tia morreu numa UPA no litoral, a tia de uma prima morreu numa UPA na Zona Leste de São Paulo, ambos aguardando vagas de terapia intensiva. 

Explica a grande fúria do mundo? Eu dei entrevista e escrevi algo sobre as falácias dos chamados tratamentos precoces e kit-Covid. Entre algumas reações negativas nas redes sociais, fanáticos testam: e se fosse seu pai? Você não daria? E se fosse seu pai? E se fosse meu pai?! Não, eu não daria e não admitiria que algum médico prescrevesse medicamento contra malária ou verme para meu pai com uma doença viral.

Dorme agora. Nesses dias carimbei uma declaração de óbito dolorida, causa básica: Covid-19. Atendemos Percival em um espaço improvisado como unidade de terapia intensiva, com recursos longe dos ideais no momento de explosão de casos. Percival morreu. Mesma idade de meu pai. Quando dei a notícia no espaço ecumênico do hospital as filhas entraram em prantos.

Meu pai era um idoso forte e saudável, cuidava dos netos, era o centro da família. Morrer assim?! Morrer por isso?! A filha mais velha falava rápido tentando se conectar com suas ideias, a mais nova só soluçava. Eu olhei para interna que me acompanhava, Joana estava consternada,  mais intensamente quando as filhas agradeceram por tudo o que fizemos, e nós tínhamos ideia de que em uma estrutura ideal possivelmente podíamos ter feito mais, provavelmente não alteraria o desfecho, mesmo assim nos frustramos e choramos com as órfãs.

Estou com medo. Nos dias seguintes o quadro de meu pai se mantinha grave do ponto de vista respiratório, porém sem alterações nos demais aparelhos. Era esperar o pulmão desinflamar.

Quero colo. Depois de uma semana de internação, quando parecia não haver mais novidades, o meu pai teve uma mudança no quadro. Felizmente começou a melhorar e usar menos oxigênio a cada dia. No segundo sábado após sua internação eu fui buscá-lo. Alta hospitalar. Com algum cansaço ao se esforçar e com os olhos brilhando ele disse: filho eu te amo. Painho eu te amo. Vocês precisavam ver a cara de rapazinho apaixonado que ele fez quando reencontrou a minha mãe no saguão do hospital!

São meus filhos que tomam conta de mim. As crianças dançaram, pularam e gritaram quando souberam que o vovô estava de alta. Lembrei de quando eu falei para minha filha, a Menina Mais Velha, quando ela me perguntou por que as pessoas morrem. Tudo o que faz parte de seu corpinho e de meu corpo já estava nesse mundo desde a formação do planeta. Nós somos feitos, essencialmente, de pedaços de carbono e de amor. Só existimos porque outros seres vivos morreram e nos permitiram usar o carbono que estava em seus corpos, um dia precisamos devolver esses elementos para a natureza, assim, outras formas de vida surgirão com essas partes de nós. O amor permanece. Posso dormir aqui com vocês? Ela dormiu bem no meu peito, perguntando se poderia ser um passarinho ou cachorrinho e sorriu levinha quando eu disse que sim. Eu permaneci pensando nas mortes evitáveis da pandemia, embora não duvide do propósito da sentença apresentada.

É preciso amar. Pensei nos últimos dias que eu poderia receber uma declaração de óbito como as que tive que carimbar, assinar e distribuir. Meu pai voltou! Eu sou profundamente grato a cada pessoa que participou de seu cuidado. Agora imagino nós dois de cabelos grisalhos, assistindo jogos do São Paulo, abraçados como não temos podido estar nos últimos tempos. 

Lamento profundamente por todos os que perderam seus pais e seus amores nesse tempo de pandemia, para o vírus ou para as mentiras. 

Em nome de Zefa, Paulo, Renê e toda a família de meu amigo Raimundo, apresento meus sentimentos a cada uma das pessoas que perderam seus amores mortos com Covid-19 e não tiveram sequer a possibilidade de despedida.

(Esse texto tem trechos da letra de “Pais e filhos” de autoria de Renato Russo)

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Um dia nos limites entre a vida e a morte: a linha de frente da Covid-19 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/03/23/um-dia-nos-limites-entre-a-vida-e-a-morte-a-linha-de-frente-da-covid-19/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/03/23/um-dia-nos-limites-entre-a-vida-e-a-morte-a-linha-de-frente-da-covid-19/#respond Wed, 24 Mar 2021 02:15:07 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/estreia-linha-de-frente-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=12

Este é um convite para você observar, a partir do ponto de vista de quem vive sobre a transição entre a doença e a cura, nos limites entre a vida e a morte, ainda mais densos neste período de pandemia, a chamada Linha de Frente.

Pensei nos últimos dias qual seria a melhor maneira de estrear nesta Folha, com histórias que brotam nas salas de emergência e terapia intensiva, onde sobrevivo entre diagnósticos improváveis e situações inusitadas. Pensei honestamente em contar uma fábula de amor, talvez até fugindo do propósito desta página. Resolvi, entretanto, compartilhar o relato de um dia, neste período que é o pior da pandemia (até agora), como se fosse uma página rasgada de diário.

Ainda não há sol quando pego o caminho do trabalho. Assumo o meu lugar: médico responsável pela emergência dedicada à Covid-19. A interna é estudante no final do curso de medicina. Ela foi minha aluna no segundo ano, é inteligente e dedicada. Gosto dela desde quando a ensinei a aferir pressão arterial e o lado correto de usar o estetoscópio. Joana I6 (interna do 6º ano) quer ser emergencista.

Três residentes compõem o time do dia: Jorge R1 (residente do 1º ano) veio de um país vizinho se especializar no Brasil em medicina esportiva; Mariana R1 veio de uma capital do Nordeste para estudar acupuntura, Maurício R2 (residente do 2º ano), de medicina interna, está na última etapa da metamorfose e é incumbido de cuidar dos casos mais graves. Eu organizo as triagens e discuto as condutas, os ensino a fazerem os procedimentos mais complicados e manejo as vias aéreas.

Encontro o pronto-socorro superlotado, com poucos pontos de oxigênio. A sala de emergência contém duas vidas instáveis; os demais com quadros menos graves usam oxigênio em cilindros que se esvaem rapidamente. Não há macas disponíveis na observação, e o último paciente trazido pelo Samu ficou com a maca da ambulância. Discutimos alternativas: é necessário criar leitos onde não existem, é preciso, é urgente.

As notícias chegam no celular, falam de iminência de colapso do sistema. Como assim iminência?

Meu WhatsApp não para. Chega a notícia de meu primo, filho de meu padrinho, rapaz de 35 anos que está intubado numa UTI em Salvador. Felizmente as notícias são boas dentro do possível. Estável.

Estável é uma grande notícia nos dias atuais. Esboço um sorriso lembrando de Marquinho pequeno, com as bochechas proeminentes. Fecho os olhos e tento me conectar com minha madrinha e meu padrinho, mandando um bom sentimento e me sentindo mal por não pode fazer mais.

Ligo na UTI de meu hospital para saber de João, homem de 49 anos que intubei há dois dias. Ao perguntar sobre a sua exposição, ele me disse: doutor, sou trabalhador, não pude parar. Pediu que eu garantisse que sua filha teria notícias dele. Antes da sedação me disse: doutor, não me deixe morrer, não me deixe morrer! O procedimento foi executado sem intercorrências, e eu falei pessoalmente para Kimberly que seu pai a amava muito e pediu para lhe dar notícias. Agora João estava com insuficiência renal cada vez mais grave, com chance menor de sobreviver.

Uma das almas na sala de emergência pertence a Leopoldo, 84 anos, com pouca alteração de mobilidade por causa de um acidente vascular encefálico. Fora isso era um velhinho pleno. Foi admitido com síndrome respiratória aguda grave, necessitando de altos fluxos de oxigênio. Mauricio R2 esclareceu sobre a gravidade e o risco de morte, falou da possibilidade de intubação, explicou o que seria ser mantido vivo graças à máquina de respirar. Leopoldo foi taxativo: não queria morrer numa máquina dessas, não queria ser submetido a esse sofrimento, e a família concordou –haja analgesia e cuidado.

Joana I6 aprende com Maurício R2 a ajustar o ventilador mecânico de Juarez, intubado, aguardando uma vaga de UTI improvável. O residente se esforça para cuidar dos doentes e compartilhar o seu conhecimento; ela apreende e reproduz.

Jorge R1 cuida do senhor Yoshi que está com um quadro respiratório atípico esperando o resultado de tomografia. Abrimos juntos a tomografia: sem sinais de Covid-19… O diagnóstico era outro. Os olhos de Jorge R1, no seu 1,90 m, se encharcam. É empatia que chama. O filho de Yoshi quer que contemos apenas para ele o diagnóstico do pai; dizemos que não podemos omitir os resultados de uma pessoa, se ela quer saber não é ético. Jorge R1 engasga e não consegue dizer a Yoshi o que se passa com ele. Eu assumo a palavra e digo de uma forma que ele possa compreender: é câncer de pulmão com metástases. Encaminhamos para oncologia e tentamos amenizar, mesmo quando isso não é possível. Jorge R1 pede para tomar uma água. Permitido! Ele se afasta de cabeça baixa falando consigo mesmo.

Mariana R1 aproveita suas habilidades com as agulhas e colhe as gasometrias. Conta de sua mudança para São Paulo neste caos, mas lá também estava o caos. Onde não estava? Ela trata de uma paciente com dor no tórax. Não era coronavírus, não era embolia, era dor da angústia que dói no corpo e na alma.

Chega uma ambulância do Samu com mais uma paciente com suspeita de Covid-19, eu aviso à regulação: não tem leito, não tem maca, não tem ponto de oxigênio. Tenso e com alguma vergonha aviso ao colega que não temos condição de recebê-la. Eles dão meia-volta e procuram outro destino.

Anselmo está em observação, com ventilação não invasiva. O celular dele toca sem parar. Horas depois, já com catéter nasal, ele toma uma bronca da esposa pelo telefone. Eu vou te matar! Por que não deu notícia?!. Não podia falar por causa da máscara! Não importa, dê seus pulos! O povo acha graça e ele dá uma piscadela.

Leopoldo piora muito, Maurício R2 liga para a família e os avisa da iminência da morte. Em minutos chegam dois filhos, uma filha e a esposa. O protocolo não permite despedidas. Rasguem-se os protocolos. Paula, a enfermeira da unidade, assente. E se estivesse no lugar deles? Máscara para todos, eles o observam através de janela de acrílico da sala emergência. Joana I6 de um lado, Maurício R2 do outro. Todos acenam um tchau ritmado, devagarinho, amoroso.  Amor, abre o olho! Adeus, papai! Muito obrigado, pai! Você foi o melhor pai do mundo! Vai com Deus, papai! A gente vai se encontrar em breve, meu amor! Por que ele não abre os olhos?

A família chora, as enfermeiras choram, Joana I6 e Maurício R2 choram, os pacientes que aguardam triagem choram. Eu, mais duro, pego mais uma ficha e chamo pelo nome.

Começo a explicar o fluxo –só atendemos casos graves. Enquanto falo concentrado para coordenar a respiração e as palavras, meus olhos me traem e inundam. O paciente não grave entende que precisa procurar uma unidade de pronto-atendimento e agradece.

Organizo a passagem de plantão, abro no computador a tela da central de regulação para checar as vagas oferecidas para os nossos pedidos: zero vagas cedidas no dia. Passamos os casos, com a retaguarda ainda mais cheia, inclusive com pessoas recebendo oxigênio em cadeiras enquanto aguardam maca.

Na saída do plantão um amigo pede suporte por mensagem de telefone. Eu digo que está difícil, mas tentaria ajudar. Ele só quer uma orientação: uma amiga nossa com Covid-19 foi encontrada morta em casa. Ele queria saber o que dizer às duas pessoas que encontraram o seu corpo e tentaram reanimar. Eu mando uma mensagem de áudio soluçada e tremida com algumas sugestões.

No carro, antes da partida, repasso brevemente o noticiário e observo os gráficos de evolução da pandemia: recorde de casos e mortes, como minha experiência sugeria. No caminho de casa costumo ouvir Bethânia, Milton ou Racionais, ao sabor do dia. Agora só o silêncio me abraçaria.

Em casa encontro minha família, todos tensos com o dia de confinamento. Agora eu e os filhotes nos embolamos. Eles exigem: papai, está na hora de nossa aventura, conta uma história da caatinga!

Eu apago a luz e narro coisas de minha infância em Cansanção, sertão da Bahia, tempos em que eu era invulnerável, brincava com onças, caçava lobisomens ferozes e presenciava as façanhas mágicas dos curadores. Aí encontro minha Cordisburgo ou invento minha Macondo. Com as crianças no peito, entre risadinhas e gritinhos de susto, eu pego no sono antes delas. Eu queria contar uma estória de amor. Quem sabe eu tenha contado alguma história de amor?

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