Linha de frente https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br É no hospital que as histórias de vida começam e terminam Sat, 25 Dec 2021 12:45:44 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O significado de um dia sem mortos https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/11/08/o-significado-de-um-dia-sem-mortos/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/11/08/o-significado-de-um-dia-sem-mortos/#respond Mon, 08 Nov 2021 22:14:31 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/Mulher-de-alta-se-despede-do-hospital-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=182 No feriado prolongado dedicado à memória dos mortos, eu dei três plantões na emergência referenciada em que se atendem exclusivamente casos graves, entre os quais não fiz um único diagnóstico de Covid-19. A realidade da chamada linha de frente é uma biópsia do que acontece no mundo ao redor, a cidade de São Paulo inteira registrou um óbito no dia de finados. Então, uma centelha de esperança me aqueceu.

A sequência de notícias positivas culmina neste dia 08 de novembro, quando pela primeira vez desde o início da pandemia, o boletim epidemiológico do estado de São Paulo não registrou um único óbito. Nenhum. Nenhuma morte por coronavírus.

Falando de um hospital que precisou providenciar leitos de internação na emergência, onde já passamos mais de uma semana com paciente aguardando vaga de terapia intensiva, onde a gente intubava uma pessoa enquanto outras aguardavam o primeiro atendimento em macas de ambulância, há um alento. E esse resultado se deve sem dúvidas ao avanço da vacinação em São Paulo e no Brasil.

Apesar dos próceres do negacionismo que boicotaram como puderam a imunização, bastou a chegada das vacinas para os profissionais do Sistema Único de Saúde distribuírem e vacinarem maciçamente a população. Graças a esses trabalhadores e ao nosso povo, que tem como patrimônio o maior programa público de imunizações do mundo, por aqui a realidade atropelou os grupos de WhatsApp e propaganda oficiosa, 94% das pessoas assumiram querer se vacinar.

Destaque-se que é possível que o número zero de óbitos seja corrigido nos próximos dias, mas esse registro de um dia sem mortos em São Paulo deve ser celebrado e significa, antes de tudo, que as vacinas salvam vidas e nos dão expectativas de superar a pandemia.

Entretanto, destaque-se que os imunizantes contra a Covid-19 são mais eficazes para prevenir casos graves e mortes do que infecções, e as chamadas medidas não farmacológicas, como uso de máscaras, ventilação de ambientes e limitação do número de pessoas em eventos para evitar aglomerações são necessários para evitarmos a recrudescência observada na Europa, em que países com menor cobertura vacinal do oriente passam pelo pior momento da pandemia tanto em número de casos quanto de mortes, e no ocidente há uma explosão de casos com aumento menor de óbitos graças às vacinas.

Quem nessa altura segue fazendo propaganda antivacina atenta contra a vida em larga escala, assim como quem alega razões individuais para recusa da imunização que não protege apenas o indivíduo mas toda a coletividade.

Nesse momento é possível e necessário celebrar a vida, a ciência, o nosso tão atacado SUS e seus trabalhadores. Mas não percamos o horizonte de cuidados, nem esqueçamos que a pandemia descontrolada em diversos lugares do globo, a propaganda antivacina, e a distribuição desigual dos imunizantes – enquanto 51% da população mundial recebeu ao menos uma dose de vacina contra a Covid-19, em países de baixa renda esse número cai para 4,2%, faz com que o conjunto da humanidade siga em risco.

Haverá porvir, mas para superar a Covid-19 precisamos vencer as epidemias de individualismo e de desinformação. Haja vida!

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Carlos Neder, presente! https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/25/carlos-neder-presente/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/25/carlos-neder-presente/#respond Sun, 26 Sep 2021 00:13:43 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/4DDF2C8A-48CB-48D4-8B3F-500786291891-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=150 No início dos anos 2000, durante a graduação em medicina na USP, eu participei da direção do Caoc (Centro Acadêmico Oswaldo Cruz). Nossa geração tinha grande orgulho de sermos sucessores de jovens que se engajaram na resistência à ditadura civil-militar brasileira, e passamos a promover encontros entre os estudantes da época com a chamada velha guarda, que dirigiu o Caoc entre os anos 1960 e 1970.

Foi num desses momentos que conheci Carlos Neder. Se vocês não estão lembrados, dá licença de falar, Carlos era de Campo Grande, ingressou na Fmusp em 1973 e recebeu a alcunha de Mato Grosso. Destaco: o Mato Grosso do Sul só foi criado em 1977.

O estudante Mato Grosso atuou no Caoc como diretor do departamento de pesquisas médicas e sociais. Entre suas atribuições, passou a frequentar comunidades carentes da Zona Leste onde, ao lado de seus companheiros da faculdade e orientados por jovens médicos atendia pessoas pobres no terreno de uma igreja e discutia política no território.

Essa militância estudantil foi decisiva para a organização de movimentos populares fundamentais à chamada reforma sanitária brasileira. Quando Neder se formou, não teve dúvidas de que se dedicaria à saúde pública e passou a trabalhar como sanitarista no extremo Leste de São Paulo, de onde seguiu lançando sementes, colaborando com a construção do que seria o nosso Sistema Único de Saúde, com a saúde sendo considerada direito de todos e dever do Estado na Constituição de 1988.

Neder foi secretário municipal de saúde na gestão de Luiza Erundina, vereador da capital e deputado estadual, mas ao falar de Carlos antes de citar qualquer cargo que ocupou, destaque-se um homem que nunca vacilou na defesa dos seus princípios éticos e morais, da democracia como caminho e do socialismo como horizonte. Suas convicções muitas vezes lhe custaram, dentro de um sistema político extremamente pragmático, com os parlamentares apartados de suas chamadas bases sociais, mas Neder sempre teve Mato Grosso, um jovem sonhador, orientando os seus caminhos.

Soube há algumas semanas que meu amigo estava com Covid-19, que fora internado, depois transferido para uma unidade de terapia intensiva, eram sucessivas notícias de agravamento de seu quadro clínico. Há dois dias soubemos que Carlos se encontrava numa situação irreversível, sob cuidados paliativos exclusivos. Confesso que as lágrimas me desafiaram, com tristeza pela iminência da perda de meu amigo, mas de alguma maneira contemporizado pelo fato dele ter o tratamento voltado para o alívio de qualquer sofrimento. Hoje soube que Carlos morreu, mas os semeadores deixam legados bonitos que terão consequências não apenas aqui e agora, mas também no porvir.

Meu amigo Carlos, superaremos essa pandemia, reencontraremos os caminhos para a construção do SUS, obra de sua vida e de tantas outras pessoas valorosas, haverá primavera e haverá memória.

Carlos Neder, presente!

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Queiroga é um ministro de cabeça abaixada e dedo erguido https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/21/queiroga-e-um-ministro-de-cabeca-abaixada-e-dedo-erguido/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/21/queiroga-e-um-ministro-de-cabeca-abaixada-e-dedo-erguido/#respond Tue, 21 Sep 2021 14:25:44 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/Marcelo-Queiroga-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=139 Era uma vez um governo acuado. Após demitir dois médicos experimentados em gestão, o presidente ofereceu o Ministério da Saúde a um General de sua mais elevada confiança, a sua missão seria deixar o vírus circular livremente, o que traria mortos (e daí?) mas também a chamada “imunidade de rebanho”, assim o país sairia da pandemia antes dos outros e o impacto econômico seria minimizado.

A tese defendida pelo governo, antiética e sem lastro científico mostrou-se equivocada e após centenas de milhares de mortos, da paralisação da capacidade produtiva do país, uma CPI passou a ameaçar o presidente. Tem que mudar isso aí! Encontraram alguém que tinha diploma de medicina, alguma projeção em sua especialidade e trânsito dentro da corporação médica.

Nas primeiras entrevistas como ministro, Marcelo Queiroga declarou de peito aberto que os posicionamentos de seu exercício ministerial seriam técnicos.

Não demorou muito para que o ministro ocupasse o palco da Comissão Parlamentar de Inquérito. Lá vimos um homem de fala embargada, ombros retraídos e cabeça baixa que, para a vergonha de Hipócrates e dos seguidores de seus preceitos, declarou que não tinha condições de julgar as políticas de governo que precederam sua presença no Ministério. Ao ser testado pelos Senadores, que procuraram nele algum senso republicano, Marcelo declarou que não tinha condições de censurar o presidente e agradecia a ele por ter lhe concedido a maior oportunidade sua vida. Oportunidade, oportunidade, oportunidade.

Após dar seguidas declarações contra a obrigatoriedade do uso de máscaras, na última semana, Queiroga orientou por ato de ofício a suspensão da vacinação de adolescentes, e ainda apelou às mães para que não vacinassem seus filhos com argumentos pseudocientíficos e inverdades, o Ministro tirou aos poucos e em definitivo a máscara de defensor da ciência.

Agora, Queiroga que faz parte do cortejo do único presidente que não recebeu vacina entre todos os presentes à 76a Assembleia-Geral da ONU, nos EUA, enfrenta com dedo médio erguido, pessoas que protestam contra as políticas do Governo que ele alegou de cabeça baixa que não tinha condições de julgar.

Indiferente ao desastre na condução do enfrentamento da pandemia, também por sua responsabilidade, que já resultou em quase 600 mil mortes confirmadas, Queiroga demonstra não ter limites para defender seu cargo e para retribuir a oportunidade que recebeu de Bolsonaro. Na Assembleia-Geral da ONU, Bolsonaro faz mais um discurso negacionista, que entrará para a história como exemplo vexaminoso, Marcelo Queiroga faz parte da claque que o aplaude.  Oportunidade, oportunidade, oportunidade.

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Manifestações a favor do descontrole da pandemia e do colapso econômico https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/07/manifestacoes-a-favor-do-descontrole-da-pandemia-e-do-colapso-economico/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/07/manifestacoes-a-favor-do-descontrole-da-pandemia-e-do-colapso-economico/#respond Tue, 07 Sep 2021 17:29:37 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/Protesto-bolsonarista-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=62 Um dos primeiros casos graves de Covid-19 que atendi, ainda em março de 2020, foi o de Edwiges, 44, negra. Ela trabalhava como cuidadora de idosos e estava na residência dos patrões num bairro rico, quando foi resgatada pela equipe do Samu, já em insuficiência respiratória.

A imagem da tomografia de tórax com pneumonia bilateral, foi suficiente para deixá-la em isolamento respiratório e para justificar a coleta do RT-PCR para o Sars-CoV-2. Eu solicitei transferência para uma UTI destacada para pessoas infectadas pelo coronavírus, mas ela não aguentaria aguardar sem ser intubada.  Expliquei o procedimento e ela assentiu com a cabeça, respirando rápido e superficialmente, mesmo com máscara de oxigênio com reservatório.

O fisioterapeuta, o enfermeiro e eu formamos um triângulo em volta da paciente. Bem posicionada, tudo checado. Sequencia rápida de intubação: analgésico para tirar a dor, sedativo para dormir, bloqueador neuromuscular para paralisar a respiração. Ela tinha uma via aérea difícil, mal dava para visualizar, mas felizmente, com os dispositivos apropriados, fizemos o procedimento adequadamente. Ao final do plantão, ela já estava admitida em UTI de referência para casos de Covid-19.

Em tempo de cuidar dos outros pacientes, tirei a paramentação e fui ver Salustiana, 56 anos, branca. Trabalhava como catadora de material reciclável e fora internada havia um dia com queimadura extensa. Vi aquele corpo frágil coberto de faixas. Ela queimou-se com álcool que usava para acender a lenha com que cozinhava em seu barraco numa comunidade vizinha ao hospital. Ela não tinha dinheiro para comprar gás de cozinha. Felizmente, o hospital do SUS de referência de cirurgia de grandes queimados tinha uma vaga para ela e aceitou a paciente prontamente.

A cena de Edwiges e Salustiana internadas na mesma unidade me revisita, sempre que emerge o falsa dicotomia entre priorizar o controle pandemia ou economia, dado que nosso povo adoece e morre em consequência de ambas as tragédias.

Daquele dia até hoje houve centenas de milhares de mortes, e aumento vertiginoso não apenas do gás de cozinha mas de diversos combustíveis e fontes de energia, além da fome e do desemprego — quantas vezes histórias como as de Edwiges e Salustiana se repetiram?

O Brasil, por culpa de suas maiores autoridades, com destaque para o presidente da República, falhou miseravelmente tanto no controle da Covid-19, quanto na gestão da economia. Em retrocessos não apenas institucionais, mas civilizatórios. Por isso, pergunto: em defesa de que manifestantes adotam uma agenda de ataques às instituições, à independência entre os Poderes da República e à própria democracia? Os que vão às ruas neste 7 de setembro em apoio ao governo Bolsonaro, o fazem a favor do descontrole da pandemia ou do colapso econômico? São favor da peste, da fome ou de ambas?

 

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O jeito de morrer uma estrela na pandemia https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/08/26/o-jeito-de-morrer-uma-estrela-na-pandemia/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/08/26/o-jeito-de-morrer-uma-estrela-na-pandemia/#respond Fri, 27 Aug 2021 02:19:24 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/Kepler-Supernova-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=119 Nos dias da chamada segunda onda de Covid-19 no Brasil, Desirée chegou à emergência trazida pelo SAMU, desacompanhada, numa tarde sem muito sol. Altiva em seus oitenta anos, com as sobrancelhas perfeitamente delineadas, envoltas a algumas rugas e manchas acastanhadas pela pele branca. Cansada, saturação de sessenta por cento, extremidades frias e azuladas, ela melhorou razoavelmente com uma máscara não reinalante e dez litros de oxigênio por minuto. A frequência respiratória ainda estava elevada mas as saturação ficou por volta de noventa.

Um quadro gripal se instalara havia uma semana, passara três dias sem conseguir sair do sofá, algo prostrada, era mais uma pessoa infectada pelo coronavírus. Morava sozinha, estava isolada. Família?  Tinha uma filha já com seus sessenta anos, mas não se visitavam nem antes da pandemia. 

Por que demorou tanto pra pedir ajuda?

Porque já sabia que ia morrer. 

Como assim? Um dia todos vamos morrer. Mas essa doença é aguda, é possível tentar tratar.

Você sabe que eu não tenho chance. Fala a verdade? Eu tenho chance?

Seu quadro é grave, mas dá pra dar remédio e tentar desinflamar o pulmão, dar oxigênio. Se precisar a gente pode intubar e levar pra unidade de terapia intensiva.

Intubar é colocar aquele tubo pela boca e ligar naquele aparelho?

Sim!

De jeito nenhum! Doutor, eu me apresentei até em Paris, eu sou uma estrela. Isso é jeito de morrer uma estrela? Com esse negócio na boca? Numa máquina dessas? Largada numa UTI que nem minha irmã? 

O que a senhora quer que eu faça?

Um guaraná! Me arruma um guaraná que eu te dou cinquenta reais. Eu só preciso de um guaraná geladinho com uma fatia de laranja!

Eu recusei a oferta, mas busquei à revelia dos protocolos, o guaraná gelado com a fatia de laranja desejado por Desirée. Na saída do pronto-socorro encontrei a sua filha.

Sua mãe está grave, com risco de morte imediato, mas estamos cuidando dela.

Quero que faça tudo! Não tem vaga de UTI?

Eu respeito seu sofrimento, mas Desisée está consciente, bem orientada, ela não autorizou que fizéssemos procedimentos invasivos, e também disse que não quer ir pra UTI.

Eu exijo! Se você não salvar minha mãe eu vou processar você, o hospital, todo mundo!

Retorno à emergência, Desirée toma o guaraná pelo canudinho com algum esforço.

Sua filha disse que vai me processar se eu não mandar a senhora pra UTI.

O quê? Eu tive doze filhos felinos e uma humana. Ela é a pior. Isso é remorso… lembrou que tem mãe? Eu não quero! Ainda mais se sair daqui dependendo dela. Minha vida foi muito boa, não queria pegar essa desgraça, mas está tudo certo!

Na saída do plantão consegui um cateter de alto-fluxo e deixei Desirée algo mais confortável. Escrevi no prontuário os desejos de Desirée e passei o caso.

No dia seguinte retornei ao hospital, mas não encontrei Desirée. Olhando para o leito vazio, lembrei Carl Sagan em Cosmos, dizendo que todos nós somos feitos de poeira de estrelas mortas. Que a vida é feita estrelas mortas. Dediquei esse pensamento à Desirée que devolvia ao universo a matéria.

Algumas semanas depois chegou uma notificação a meu respeito, direto da ouvidoria do hospital, fui chamado para tomar ciência, era da filha de Desirée.

Um bilhete, escrito com caneta tinteiro trazia a sentença:

Doutor, estou ainda abatida pela morte de minha mãe. Não tem sido fácil. Peço desculpas por ter te destratado no momento em que cuidava dela, receba essa rosa com agradecimento – até sempre. 

 

 

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A jornada do cirurgião Valdir Zamboni https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/15/a-jornada-do-cirurgiao-valdir-zamboni/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/15/a-jornada-do-cirurgiao-valdir-zamboni/#respond Wed, 16 Jun 2021 01:55:50 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/6C1D2558-974A-45D2-8CA4-1AA282A84A57-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=111 Peito de aço! Eu, interninho, ficava impressionado com o cirurgião do trauma, cabelos já cor de cinza, que falava de braços abertos, chamando atenção dos residentes. Presta atenção! Presta atenção!

Ágil e seguro na sala de emergência, capaz de abrir um tórax em segundos, a turma dizia que ele era o cirurgião do Rally dos Sertões. Pense num cara entubando um paciente traumatizado na beira de uma estrada de areia – no nada?!

Alguns anos depois, eu já formado fui aprovado em concurso para ser médico no Hospital Universitário, lá estava Valdir Zamboni, meu velho professor, agora colega de plantão no mesmo pronto-socorro: um cirurgião que gosta de operar, que não posterga, que põe na mesa. Um médico que não abandona seu paciente, um exemplo.

Durante a pandemia destacamos no pronto-socorro uma área para atender casos suspeitos de Covid-19. Lá estava eu no balcão deste distinto local quando o Zamba saiu de um consultório. Fazendo muitos senões, passou em atendimento com um colega, estava infectado pelo coronavírus, era leve no momento. Ele se despediu reclamando de leve por precisar se afastar do hospital.

Quatro dias depois disseram no grupo de WhatsApp que o homem voltou grave, e fora transferido para unidade de terapia intensiva do Hospital das Clínicas com insuficiência respiratória refratária.

Desacordado, sedado, ligado a aparelhos para respirar, permaneceu por oitenta e oito dias. A gente pedia notícia e percebia faces de pesar, a ponto de nos questionarmos se ainda veríamos nosso amigo.

Desligada a sedação, o homem não acordou por dias. O que aconteceu?

Um dia, eu passando visita no serviço de infectologia do Instituto de Rebilitação Lucy Montoro observei a ficha de um novo paciente: Valdir Zamboni.

Ao quarto, encontro o homem: usava um cateter de oxigênio com baixo fluxo. Comprimiu os olhos, me reconheceu, sorriu, e quando eu me aproximei ele chorou. Fez questão de gravar uma mensagem bonita pra nossos companheiros de trabalho. Eu vou me recuperar! Eu ainda vou voltar pro HU! Ele dizia.

Após algumas semanas o velho Zamba recebeu alta do Lucy, com uma melhora considerável e ascendente. Desde então não o via pessoalmente.

Hoje recebi notícias de Zamboni. Ele retornou ao Hospital Universitário para fazer o que Maia sabe: atender doentes, operar e ensinar aos mais jovens com seu exemplo e com suas palavras: presta atenção! Presta atenção! Viva!

 

 

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Um casal de namorados na emergência respiratória https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/12/um-casal-de-namorados-na-emergencia-respiratoria/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/12/um-casal-de-namorados-na-emergencia-respiratoria/#respond Sat, 12 Jun 2021 23:03:52 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/Eugenio-Zampighi--300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=107 Um casal de namorados chega ao pronto-socorro de ambulância.

A enfermeira do SAMU, algo tensa, se aproxima para fazer a passagem do caso.

Suspeita de Covid! Chamado por falta de ar. Homem de oitenta e dois anos, na cena a saturação de oxigênio estava 47%.

Na maca vejo um senhor simpaticão de cabelo acaju, apesar do esforço respiratório, mesmo com uma máscara, ele sorri encarando uma distinta senhora de cabelos dourados e vestido elegante, o flerte chama a atenção dada a situação. 

Para sala de emergência. Monitoramos o homem, colocamos uma máscara não reinalante com reservatório de oxigênio. O esforço respiratório persiste. É melhor pegar a história com a acompanhante.

Bom dia, eu sou o médico responsável pelo caso do seu Alfredo, a senhora pode dizer o que aconteceu?

Doutor, esse homem tava muito solitário e acabou mudando pra minha casa pra passar a pandemia.

Ele tem alguma doença?

Não!

Ele precisa de ajuda pra alguma atividade diária?

Isso é danado!

Quando ele adoeceu?

Tem uns dez dias, começou com um resfriado. Dei chá! Mas tem uns três dias que piorou! Já pelejei pra trazer esse homem! Não queria… agora, morrendo… não levantou hoje, chamei o socorro.

Posso passar um parecer?

Sim!

Alfredo está muito grave, faltando oxigênio! Precisamos sedar e intubar. A senhora sabe o que isso significa?

Sei sim!  Tem chance de morrer?

Infelizmente sim.

Vixe! Será que não era bom avisar a esposa dele?

A senhora?

Eu tava quieta! A mulher dele é aquele tipo de pessoa possessiva… tratava ele mal. Pediu pra vir pra minha casa e eu acolhi, ué. Se o senhor quiser eu tenho o número dela. Só não vou ligar…

Vou perguntar pra ele, é melhor.

Seu Alfredo! Seu Alfredo! Nós vamos precisar intubar o senhor. O senhor sabe o que é isso?

S i m! F a ç a  o  q u e  p r e c i s a r,  d o u t o r!

O senhor deseja que a gente avise sua mulher?

A  D o r o t e i a?

Sua esposa e seus filhos…

A q u e l e s  n ã o! P o d e  d i z e r  p r a  e s s a  a í! F a z  f a v o r? – mira meus olhos.

D i z   p r a  D o r o t e i a  q u e  e l a  s i m  é  a  m u i é  d e  m i n h a  v i d a! Enquanto sussurra fecha os olhos com efeito do fentanil.

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A melhor resposta: o espetáculo da vida https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/morte-e-vida-na-pandemia/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/morte-e-vida-na-pandemia/#respond Fri, 28 May 2021 13:15:37 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/grávida-com-as-mãos-na-barriga-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=90

“E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida”

João Cabral de Melo Neto

Débora e Janice estiveram grávidas nos mesmos dias, as crias se conheceram de dentro dos ventres. José dizia para o amigo Valter: nossos filhos ainda vão se casar e nos dar um neto, sorrindo. Zezinho era menor e menos encorpado que Aline, o pai alertava que se ele não comesse não cresceria para casar com a garota. Eles cresceram pertinho, na mesma comunidade, separados por poucos metros na escola dominical.

José morreu de repente. Foi de coração. O menino ainda não estava criado. Após alguns anos Zezinho, usando o anel de seu pai, casou com Aline. Nos dias festivos reuniam-se com a família na casa da matriarca Arminda, lúcida e altiva em seus muitos anos. Ela abraçava Aline e perguntava: quando eu vou ter um bisneto? A neta sorria e dizia que chegaria o tempo.

Chegou a pandemia. Já não era possível abraçar como sempre, nem se juntar para almoçar na casa da vovó. Houve distância, houve silêncio, houve saudade.

Vovó Arminda contraiu o coronavírus, foi internada, acabou sendo admitida numa unidade de terapia intensiva. Alguns dias depois o papai Valter: aquele homem forte, que tinha um voz doce e tocava violão como ninguém, também ficou cansado, RTPCR positivo, admitido no hospital via emergência. Os dias quase não passaram para Aline com dois amores internados. Em suma: Arminda não soube quando seu filho foi internado, Valter não soube quando sua mãe morreu. Algumas semanas e muitas intercorrências depois ele também se foi. Vovó e papai, adeus.

Não havia muita cor naqueles dias de luto até que o teste veio com duas fitinhas: existia uma promessa de vida pulsando em Aline. Quando Zezinho tomou conhecimento fechou os olhos e se conectou com o seu pai: ele tinha avisado! Agora era a sua vez.

Zezinho esteve com tosse, catarro e cansaço: Covid-19 confirmada. Precisou se isolar da mulher. Ela ficou sozinha, sozinha. Após duas semanas (eternas) ele retornou com o quadro resolvido, o vírus passou longe dela.

Contrações, maternidade, dilatação, parto natural. Pedro nasceu forte, pulsante, lindo. Aline ficou extasiada, em seus braços e em seu seio cabia todo o amor do mundo. Ela olhou o seu pequeno e viu nele as promessas de vida mais bonitas. Ali viviam: as palavras de José, as músicas de Valter, os sonhos de Arminda. O choro do seu filho trazia um sinal de que a vida se impõe. Antes de pegar no sono pela primeira vez, ela abraçou o pequenino e sussurrou: bença, vovó Arminda, aqui está o seu bisneto.

No princípio era o verbo, agora chegou o tempo.

 

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Mãe morre de Covid-19 e cede o leito ao próprio filho https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/mae-morre-de-covid-19-e-cede-o-leito-ao-proprio-filho/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/mae-morre-de-covid-19-e-cede-o-leito-ao-proprio-filho/#respond Mon, 10 May 2021 23:28:45 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Leito-vago--300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=76 Quando Maria da Conceição descobriu que esperava uma criança, a maior preocupação que lhe ocorreu foi não ter um lugar para acolher o seu filho, um quartinho certamente não seria tangível, mas quem sabe um bercinho? Assim, após muitas jornadas de trabalho, adquiriu através de crediário o berço e as roupinhas de cama, muito bonitas e arrumadinhas.

Agora Renato tem quinze anos, Maria da Conceição se preocupa desesperadamente com a capacidade de oferecer comida ao seu filho e pagar o aluguel atrasado. A pandemia consterna, já perdeu gente querida, mas não seria possível parar de trabalhar. Renato tenta, com dificuldades, acompanhar as teleaulas e joga videogame nas horas livres que passa sozinho em casa.

Maria da Conceição apresenta tosse, febre e um crescente desconforto para respirar. Renato tem sintomas semelhantes após alguns dias. A mãe pensa em procurar o hospital, mas quem cuidaria de Renato? Por isso resiste até que perde os sentidos, imediatamente seu filho chama a ambulância do SAMU.

A mulher é admitida na emergência em estado grave, a saturação de oxigênio é imensurável em suas mão frias. Precisa de intubação, cateter central, medicamento para manter a pressão arterial. Com alguma melhora, Maria da Conceição é transferida para a unidade de terapia intensiva.

Renato, alheio às estatísticas, piora progressivamente e precisa ser internado. Como não há vagas, permanece sob observação na sala de emergência. O rapaz chora quando ninguém está olhando, tanto por medo daquele ambiente hostil e da doença, mas também por não estar com sua mãe, nem ter notícias dela. É a primeira vez que são separados. Ele permanece pendurado na máscara de ventilação não invasiva, com alta fração inspirada de oxigênio. Da central de regulação, não chega sequer perspectiva de leito.

Após um choque refratário e queda persistente da oxigenação, sem conhecimento da internação de seu garoto, Maria da Conceição, após muito esforço, entrega o seu próprio leito para receber o seu filho na unidade de terapia intensiva.

** Este texto inaugura uma nova Seção neste Blog: “Cotidiano da pandemia”, inspirada na coluna “Cotidiano Imaginário” em que o médico e escritor Moacyr Scliar publicava na Folha textos de ficção baseados em notícias do jornal. O livro “Imaginário cotidiano” (Global 2001) reúne textos produzidos por Moacyr de 1996 a 2001. Aqui, compartilharemos textos ficcionais baseados em publicações em redes sociais.

“Essa semana a vaga de UTI Covid de um garoto de 15 anos só foi possível pq a mãe dele, que estava nessa vaga, faleceu no dia anterior. Ele não sabe disso, e muito menos que a mãe se foi… Ninguém está preparado para isso, ninguém! #secuide“. Publicado no twitter por @casalInfecto, perfil dos infectologistas Danilo Galvão e Tassiana Galvão.

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Pais e filhos: sobre o meu pai internado com Covid-19 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/04/15/pais-e-filhos-sobre-o-meu-pai-internado-com-covid-19/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/04/15/pais-e-filhos-sobre-o-meu-pai-internado-com-covid-19/#respond Thu, 15 Apr 2021 13:41:27 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/homem-internado-com-Covid-19-usa-cateter-de-alto-fluxo-de-O2-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=51 Estátuas e cofres. Minha filha de 6 anos me olhou nos olhos antes da saída para o hospital, ela sabe que o papai trabalha na emergência atendendo casos de Covid-19.

Papai, você vai voltar?

Papai, você vai voltar?! Eu fiquei de cócoras, mirei seus olhinhos e falei a verdade como me ocorreu: nenhum papai sabe se vai voltar quando sai de casa.

Papai, por que as pessoas morrem?

Ninguém sabe o que aconteceu. Enquanto eu atendia pessoas doentes no pronto socorro observei uma ligação não atendida de meu pai. Nesses dias, chamada perdida sempre deixa alguma angústia. Retorno. Meu pai estava com febre, tosse e algum desconforto na garganta. Síndrome gripal. Recomendei que notificasse o seu médico e solicitasse uma teleconsulta, também sugeri que fizesse um teste no dia seguinte, o terceiro do quadro. O exame confirmou: meu pai estava com Covid-19.

Nada fácil de entender. Papai ficou em isolamento domiciliar, eu projetava que ele provavelmente teria um quadro brando e  brigava com presságios ruins que apareciam a me desafiar. Tentei não dar uma de médico de meu pai. 

Um dia, na primeira olhada no celular, soube pelo Claudemir que o nosso querido Raimundo tinha morrido de Covid-19. Lembrei do homem me recebendo em sua casa no Rio Bonito em muitos sábados, eu brincava com seus filhos e tomávamos sorvete de pistache comprado de uma vizinha. Recordei também de Raimundo e Zefa dançando um forrozinho cadenciado, abraçadinhos, a tarde toda de um lado pro outro em menos de um metro de chão. Enquanto eu passava visita de controle de infecção na UTI da neonatologia desconcentrei, quando Silvia me pediu opinião sobre um antibiótico eu simplesmente não tinha ouvido o caso, estava com os olhos cheios, com meus sentimentos em Raimundo, em Zefa e em meu pai também, que estava bem até aquele momento.

Após o oitavo dia de doença meu pai teve uma piora discreta. Não precisaria de oxigênio nem de hospitalização imediata, mas no décimo terceiro dia ele ficou cansadíssimo, a saturação de oxigênio despencou e ele foi levado para uma emergência.

No serviço que meu pai procurou felizmente havia leito para internação, a princípio na enfermaria. 

Quando cheguei em casa, a minha filha me cobrou satisfações.

Posso saber onde o senhor estava que chegou tão tarde?

Estava acompanhando o caso de meu pai que foi internado com Covid.

O vovô foi internado com coronavírus? Diz a verdade! Ele está intubado?

Não, ele não estava intubado. No primeiro dia ficou com cateter com 3 litros de oxigênio, no dia seguinte teve uma piora respiratória significativa e precisou de máscara não reinalante com 10 litros de oxigênio, a médica assistente me falou sobre deixar a UTI de sobreaviso.

Chegaram notícias pesadas. O cunhado de minha tia morreu numa UPA no litoral, a tia de uma prima morreu numa UPA na Zona Leste de São Paulo, ambos aguardando vagas de terapia intensiva. 

Explica a grande fúria do mundo? Eu dei entrevista e escrevi algo sobre as falácias dos chamados tratamentos precoces e kit-Covid. Entre algumas reações negativas nas redes sociais, fanáticos testam: e se fosse seu pai? Você não daria? E se fosse seu pai? E se fosse meu pai?! Não, eu não daria e não admitiria que algum médico prescrevesse medicamento contra malária ou verme para meu pai com uma doença viral.

Dorme agora. Nesses dias carimbei uma declaração de óbito dolorida, causa básica: Covid-19. Atendemos Percival em um espaço improvisado como unidade de terapia intensiva, com recursos longe dos ideais no momento de explosão de casos. Percival morreu. Mesma idade de meu pai. Quando dei a notícia no espaço ecumênico do hospital as filhas entraram em prantos.

Meu pai era um idoso forte e saudável, cuidava dos netos, era o centro da família. Morrer assim?! Morrer por isso?! A filha mais velha falava rápido tentando se conectar com suas ideias, a mais nova só soluçava. Eu olhei para interna que me acompanhava, Joana estava consternada,  mais intensamente quando as filhas agradeceram por tudo o que fizemos, e nós tínhamos ideia de que em uma estrutura ideal possivelmente podíamos ter feito mais, provavelmente não alteraria o desfecho, mesmo assim nos frustramos e choramos com as órfãs.

Estou com medo. Nos dias seguintes o quadro de meu pai se mantinha grave do ponto de vista respiratório, porém sem alterações nos demais aparelhos. Era esperar o pulmão desinflamar.

Quero colo. Depois de uma semana de internação, quando parecia não haver mais novidades, o meu pai teve uma mudança no quadro. Felizmente começou a melhorar e usar menos oxigênio a cada dia. No segundo sábado após sua internação eu fui buscá-lo. Alta hospitalar. Com algum cansaço ao se esforçar e com os olhos brilhando ele disse: filho eu te amo. Painho eu te amo. Vocês precisavam ver a cara de rapazinho apaixonado que ele fez quando reencontrou a minha mãe no saguão do hospital!

São meus filhos que tomam conta de mim. As crianças dançaram, pularam e gritaram quando souberam que o vovô estava de alta. Lembrei de quando eu falei para minha filha, a Menina Mais Velha, quando ela me perguntou por que as pessoas morrem. Tudo o que faz parte de seu corpinho e de meu corpo já estava nesse mundo desde a formação do planeta. Nós somos feitos, essencialmente, de pedaços de carbono e de amor. Só existimos porque outros seres vivos morreram e nos permitiram usar o carbono que estava em seus corpos, um dia precisamos devolver esses elementos para a natureza, assim, outras formas de vida surgirão com essas partes de nós. O amor permanece. Posso dormir aqui com vocês? Ela dormiu bem no meu peito, perguntando se poderia ser um passarinho ou cachorrinho e sorriu levinha quando eu disse que sim. Eu permaneci pensando nas mortes evitáveis da pandemia, embora não duvide do propósito da sentença apresentada.

É preciso amar. Pensei nos últimos dias que eu poderia receber uma declaração de óbito como as que tive que carimbar, assinar e distribuir. Meu pai voltou! Eu sou profundamente grato a cada pessoa que participou de seu cuidado. Agora imagino nós dois de cabelos grisalhos, assistindo jogos do São Paulo, abraçados como não temos podido estar nos últimos tempos. 

Lamento profundamente por todos os que perderam seus pais e seus amores nesse tempo de pandemia, para o vírus ou para as mentiras. 

Em nome de Zefa, Paulo, Renê e toda a família de meu amigo Raimundo, apresento meus sentimentos a cada uma das pessoas que perderam seus amores mortos com Covid-19 e não tiveram sequer a possibilidade de despedida.

(Esse texto tem trechos da letra de “Pais e filhos” de autoria de Renato Russo)

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