Linha de frente https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br É no hospital que as histórias de vida começam e terminam Sat, 25 Dec 2021 12:45:44 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Pais e filhos: sobre o meu pai internado com Covid-19 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/04/15/pais-e-filhos-sobre-o-meu-pai-internado-com-covid-19/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/04/15/pais-e-filhos-sobre-o-meu-pai-internado-com-covid-19/#respond Thu, 15 Apr 2021 13:41:27 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/homem-internado-com-Covid-19-usa-cateter-de-alto-fluxo-de-O2-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=51 Estátuas e cofres. Minha filha de 6 anos me olhou nos olhos antes da saída para o hospital, ela sabe que o papai trabalha na emergência atendendo casos de Covid-19.

Papai, você vai voltar?

Papai, você vai voltar?! Eu fiquei de cócoras, mirei seus olhinhos e falei a verdade como me ocorreu: nenhum papai sabe se vai voltar quando sai de casa.

Papai, por que as pessoas morrem?

Ninguém sabe o que aconteceu. Enquanto eu atendia pessoas doentes no pronto socorro observei uma ligação não atendida de meu pai. Nesses dias, chamada perdida sempre deixa alguma angústia. Retorno. Meu pai estava com febre, tosse e algum desconforto na garganta. Síndrome gripal. Recomendei que notificasse o seu médico e solicitasse uma teleconsulta, também sugeri que fizesse um teste no dia seguinte, o terceiro do quadro. O exame confirmou: meu pai estava com Covid-19.

Nada fácil de entender. Papai ficou em isolamento domiciliar, eu projetava que ele provavelmente teria um quadro brando e  brigava com presságios ruins que apareciam a me desafiar. Tentei não dar uma de médico de meu pai. 

Um dia, na primeira olhada no celular, soube pelo Claudemir que o nosso querido Raimundo tinha morrido de Covid-19. Lembrei do homem me recebendo em sua casa no Rio Bonito em muitos sábados, eu brincava com seus filhos e tomávamos sorvete de pistache comprado de uma vizinha. Recordei também de Raimundo e Zefa dançando um forrozinho cadenciado, abraçadinhos, a tarde toda de um lado pro outro em menos de um metro de chão. Enquanto eu passava visita de controle de infecção na UTI da neonatologia desconcentrei, quando Silvia me pediu opinião sobre um antibiótico eu simplesmente não tinha ouvido o caso, estava com os olhos cheios, com meus sentimentos em Raimundo, em Zefa e em meu pai também, que estava bem até aquele momento.

Após o oitavo dia de doença meu pai teve uma piora discreta. Não precisaria de oxigênio nem de hospitalização imediata, mas no décimo terceiro dia ele ficou cansadíssimo, a saturação de oxigênio despencou e ele foi levado para uma emergência.

No serviço que meu pai procurou felizmente havia leito para internação, a princípio na enfermaria. 

Quando cheguei em casa, a minha filha me cobrou satisfações.

Posso saber onde o senhor estava que chegou tão tarde?

Estava acompanhando o caso de meu pai que foi internado com Covid.

O vovô foi internado com coronavírus? Diz a verdade! Ele está intubado?

Não, ele não estava intubado. No primeiro dia ficou com cateter com 3 litros de oxigênio, no dia seguinte teve uma piora respiratória significativa e precisou de máscara não reinalante com 10 litros de oxigênio, a médica assistente me falou sobre deixar a UTI de sobreaviso.

Chegaram notícias pesadas. O cunhado de minha tia morreu numa UPA no litoral, a tia de uma prima morreu numa UPA na Zona Leste de São Paulo, ambos aguardando vagas de terapia intensiva. 

Explica a grande fúria do mundo? Eu dei entrevista e escrevi algo sobre as falácias dos chamados tratamentos precoces e kit-Covid. Entre algumas reações negativas nas redes sociais, fanáticos testam: e se fosse seu pai? Você não daria? E se fosse seu pai? E se fosse meu pai?! Não, eu não daria e não admitiria que algum médico prescrevesse medicamento contra malária ou verme para meu pai com uma doença viral.

Dorme agora. Nesses dias carimbei uma declaração de óbito dolorida, causa básica: Covid-19. Atendemos Percival em um espaço improvisado como unidade de terapia intensiva, com recursos longe dos ideais no momento de explosão de casos. Percival morreu. Mesma idade de meu pai. Quando dei a notícia no espaço ecumênico do hospital as filhas entraram em prantos.

Meu pai era um idoso forte e saudável, cuidava dos netos, era o centro da família. Morrer assim?! Morrer por isso?! A filha mais velha falava rápido tentando se conectar com suas ideias, a mais nova só soluçava. Eu olhei para interna que me acompanhava, Joana estava consternada,  mais intensamente quando as filhas agradeceram por tudo o que fizemos, e nós tínhamos ideia de que em uma estrutura ideal possivelmente podíamos ter feito mais, provavelmente não alteraria o desfecho, mesmo assim nos frustramos e choramos com as órfãs.

Estou com medo. Nos dias seguintes o quadro de meu pai se mantinha grave do ponto de vista respiratório, porém sem alterações nos demais aparelhos. Era esperar o pulmão desinflamar.

Quero colo. Depois de uma semana de internação, quando parecia não haver mais novidades, o meu pai teve uma mudança no quadro. Felizmente começou a melhorar e usar menos oxigênio a cada dia. No segundo sábado após sua internação eu fui buscá-lo. Alta hospitalar. Com algum cansaço ao se esforçar e com os olhos brilhando ele disse: filho eu te amo. Painho eu te amo. Vocês precisavam ver a cara de rapazinho apaixonado que ele fez quando reencontrou a minha mãe no saguão do hospital!

São meus filhos que tomam conta de mim. As crianças dançaram, pularam e gritaram quando souberam que o vovô estava de alta. Lembrei de quando eu falei para minha filha, a Menina Mais Velha, quando ela me perguntou por que as pessoas morrem. Tudo o que faz parte de seu corpinho e de meu corpo já estava nesse mundo desde a formação do planeta. Nós somos feitos, essencialmente, de pedaços de carbono e de amor. Só existimos porque outros seres vivos morreram e nos permitiram usar o carbono que estava em seus corpos, um dia precisamos devolver esses elementos para a natureza, assim, outras formas de vida surgirão com essas partes de nós. O amor permanece. Posso dormir aqui com vocês? Ela dormiu bem no meu peito, perguntando se poderia ser um passarinho ou cachorrinho e sorriu levinha quando eu disse que sim. Eu permaneci pensando nas mortes evitáveis da pandemia, embora não duvide do propósito da sentença apresentada.

É preciso amar. Pensei nos últimos dias que eu poderia receber uma declaração de óbito como as que tive que carimbar, assinar e distribuir. Meu pai voltou! Eu sou profundamente grato a cada pessoa que participou de seu cuidado. Agora imagino nós dois de cabelos grisalhos, assistindo jogos do São Paulo, abraçados como não temos podido estar nos últimos tempos. 

Lamento profundamente por todos os que perderam seus pais e seus amores nesse tempo de pandemia, para o vírus ou para as mentiras. 

Em nome de Zefa, Paulo, Renê e toda a família de meu amigo Raimundo, apresento meus sentimentos a cada uma das pessoas que perderam seus amores mortos com Covid-19 e não tiveram sequer a possibilidade de despedida.

(Esse texto tem trechos da letra de “Pais e filhos” de autoria de Renato Russo)

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Sobre esperar um amor em tempos de pandemia https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/03/30/sobre-esperar-um-amor-em-tempos-de-pandemia/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/03/30/sobre-esperar-um-amor-em-tempos-de-pandemia/#respond Wed, 31 Mar 2021 02:15:25 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/casal-de-mãos-dadas-na-pendemia-de-Covid-19-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=26 Eu sugeri no texto de estreia nesta Folha, que contaria uma história de amor, por isso acho que fiquei devendo algo aos leitores. Desta vez, espero ficar menos distante.

Lembre-se de um casal bonitinho, fofo, daqueles grudadinhos mesmo. Assim eram Dario e Dalila: fechadinhos! Eles andavam abraçados, trocando beijos e falando que nem criança um com o outro.

Durante o ano I da pandemia, para minha ingrata surpresa, meu amigo me ligou dizendo que tinham se separado. Ela não quis mais, ele chorou.

Há algumas semanas, Dalila me mandou mensagem preocupada com seus pais, ambos com Covid-19. O pai, de sessenta e poucos, inteirão, mestre de artes marciais preocupava mais pela queda da saturação de oxigênio. Ficamos de conversar no dia seguinte, mas ele piorou à noite e estiveram no hospital. Colheu exames complementares, fez tomografia de tórax, não havia nada que indicasse internação, prevaleceu a alta para observação em casa.

Poucos dias depois Dalila voltou a me procurar, WhatsApp brilhando. O pai piorou: saturação de noventa por cento.

Sugiro hospital, oxigênio e corticoide.

Estamos indo já.

No dia seguinte eu estava no hospital, desta vez na rotina de controle de infecção hospitalar: planilhas, treinamentos, avaliação das prescrições de antibióticos por outros médicos. O telefone toca insistentemente. Não consigo atender nesse momento. Chega mensagem, dessa vez é Dario.

Estou preocupado com a Dalila.

Os pais dela estão doentes, estou preocupado também.

Soube que ela está em aí na emergência de seu hospital com Covid, aguardando transferência!

Dalila? Ontem ela me disse que levaria o pai para o hospital!

Ela levou os pais para uma emergência do plano de saúde deles. Ambos precisaram de oxigênio e internação. Consta que também não conseguiam desgrudar as mãos. Dalila tossia na frente da enfermeira que insistiu em fazer uma medida da saturação de oxigênio. Quando colocou o aparelhinho no dedo, constatou-se que Dalila estava com a saturação pior do que os pais. De lá veio para o nosso serviço porque não tinha plano privado que permitisse permanecer com sua família.

À tarde eu estava na Linha de Frente. Na emergência, encontrei Dalila em um leito semi-improvisado em um consultório usando um cateter de oxigênio, monitorizada, aflita.

Querida! Não disse nada sobre estar passando mal, só seus pais!

Estava tão preocupada com os pais que mais nada percebia.

Eu a avalio brevemente, checo os exames. A equipe da ambulância chega para transferência.

Vai ficar tudo bem?

Os seus exames indicam uma boa evolução! Esperamos! Espero que seus pais fiquem bem também.

Obrigada!

Tem uma coisa: Dario quer saber como você está. Curioso! Fica me mandando mensagem. Você é a paciente, só digo o que você autorizar.

O olho de Dalila brilha algo mais marejante, ela morde o lábio inferior e respira fundo.

Diz tudo pra ele! Sabe de uma coisa? Eu ainda amo muito o Dario!

E assim foi conduzida na maca até a ambulância, com luzes vermelhas reluzindo em seus olhos úmidos.

O rapaz me demanda.

Como está Dalila?

Quer saber se eu a vi. Ligo pro cara.

Fala da Dalila!

Ela me autorizou a falar do quadro dela: está estável. Precisando de pouco oxigênio.

Exames de rins e coagulação estão bons, na tomografia não tinha nada de mais. É um quadro moderado, ela vai sair!

Que bom, cara, que bom!

Ela não me autorizou mas eu vou dizer uma coisa!

Não vai chorar?

Não, cara!

Ela disse que te ama, ainda te ama muito!

Dario começou a soluçar, desligou o telefone e até agora chora, esperante.

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