Linha de frente https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br É no hospital que as histórias de vida começam e terminam Sat, 25 Dec 2021 12:45:44 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O pulso ainda pulsa https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/10/22/o-pulso-ainda-pulsa/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/10/22/o-pulso-ainda-pulsa/#respond Fri, 22 Oct 2021 17:01:38 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/Paciente-intubado-Luiz-Peixoto-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=173 Parada! Parada! Parada!

José, um homem negro de 50, é trazido para a emergência após uma parada cardiorrespiratória na residência, seu filho mais velho, já adulto formado foi o primeiro a iniciar as compressões torácicas orientado pelo profissional do Samu ao telefone. A médica socorrista chegou à cena e constatou assistolia, é ritmo de parada mais grave, quando não há nenhuma atividade elétrica no coração. Reanimação, adrenalina, intubação na cena. A colega me passou o homem com o coração batendo mas fraco, fraco. As pupilas não reagiam à luz. A pressão arterial não subia mesmo com altas doses de noradrenalina. 

Converso com o rapaz, ele sabe da gravidade do quadro de seu pai, da quase impossibilidade de reversão. 

Tranquilo, doutor, estou tranquilo. O problema são meus irmãos, somos sete, até criança – e chora tenso.

Poucos minutos depois anunciamos o óbito.

Lembro de meu sogro que não conheci, um homem negro que morreu subitamente de infarto aos 49 e de meu cunhado que ainda era menino.

Dia de permanecer na emergência, passo os casos de mim para mim mesmo e para o time do plantão noturno: uma interna, um interno (estudantes do último ano de medicina), um R2 (residente do segundo ano), uma R1(residente do primeiro ano) e para o assistente que veio dividir comigo as atribuições.

O novo assistente, primeiro dia no pronto-socorro, foi nosso residente. A gente fica feliz quando nossos alunos voltam como colegas, sinal de que levaram algo para a suas vidas da formação que lhes oferecemos. 

Enquanto discutimos os casos, algo pessimista, eu falo com os internos sobre as questões pessoais que precisamos administrar para estarmos ali, na emergência. 

Perto da meia-noite chega uma ambulância do Samu, suporte básico sem médico. Trazem João, um homem negro de 47 anos, mais uma parada cardiorrespiratória. Penso novamente no avô de meus filhos que não conheci, enquanto corro pro carrinho de parada. Checo o ritmo: fibrilação ventricular.  Gravíssimo, mas é possível reverter com choque no peito. 

Projeto meu corpo para a frente, apoio as pás do desfibrilador no tórax do paciente. Eu me afasto, vocês se afastam, todos afastados. Carrego as pás. Choque! Compressões torácicas. Nada acontece, o coração do homem permanece inerte.

Distribuo as tarefas na sala. Os internos comprimem o peito 100 vezes por minuto, o residente controla a via aérea, um interno da cirurgia se oferece para controlar o tempo. A enfermeira organiza os técnicos e estudantes de enfermagem, eles administram adrenalina e antiarrítmicos na veia. Ela tem muita experiência em emergências cardiológicas, tudo organizado, sabe todos os próximos passos. A equipe trabalha compenetrada. 

Eu falo no ouvido do homem que ele tem que sair dessa, o coração vai voltar a bater! Estou confiante.

Paciente intubado, bem ventilado. Todos os protocolos feitos em acordo com as melhores recomendações de suporte avançado de vida, o coração persiste em não voltar.

Uma linha reta aparece no monitor, parece que não vai dar mais. A interna coloca as pás no peito do homem, fibrilação, ainda cabe um choque. Choque! Ela massageia buscando forças, após 12 ciclos, com o devido revezamento, todos suados.

Eu me aproximo para o próximo ciclo, subo a escadinha, um novo traçado surge no monitor. Coloco a mão no pescoço do homem procurando a carótida: tem pulso! Tem pressão! Tem perfusão! Nos abraçamos na sala, isso não é frequente, sair abraçando a equipe. Mas o abraço naquela hora foi necessário. 

O eletrocardiograma revela um infarto extenso e o paciente vai transferido para o serviço de hemodinâmica de referência, para um cateterismo cardíaco de urgência. O residente o conduz para a ambulância, as luzes vão se afastando.

Eu permaneço torcendo do fundo de meu coração para que esse João conheça os seus netos, diferente de meu sogro que as circunstâncias da vida e da morte não permitiram conhecer meus filhos.

No caso de hoje, como disse Arnaldo: o pulso ainda pulsa.

O pulso ainda pulsa!

 

]]>
0
Os professores e o milagre da vida https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/10/15/os-professores-e-o-milagre-da-vida/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/10/15/os-professores-e-o-milagre-da-vida/#respond Sat, 16 Oct 2021 02:57:18 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/WhatsApp-Image-2021-10-15-at-23.55.27-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=164 Nesses anos atuando com pacientes graves em situações críticas aprendi aos pouquinhos a ver a morte sem chorar, como na música de Vandré, mas há alguns dias saindo do hospital, os soluços e lágrimas me desafiaram, eu fechei os olhos e regressei no tempo. Prepare seu coração.

Eu venho lá do sertão. No início dos anos 1990 cheguei a São Paulo, fui morar na Vila Carioca, um bairro operário, lá ingressei na Escola Municipal Desembargador Francisco Meirelles.

No começo do ano letivo de 1993 o professor de Ciências entrou na sala, com ciso, nem um sorriso ofereceu. Classe lotada, quente, fevereiro. Ninguém o conhecia. O homem escreveu na lousa, com o giz arrastando e fazendo aquele barulho: Professor Jacomo. 

A molecada começou a debochar, com gritos, urros e eventuais bolas de papel lançadas para cima.

Ele virou de frente para a sala e permaneceu sem mexer um músculo da face. Quando só ouvíamos a sua respiração ele abriu os braços, parlando com as mãos e fez um discurso tão firme que ficamos todos envergonhados.

A escola, assim como a rede do município, estava em situação precária, apesar de professores dedicados e de uma comunidade participativa. Jacomo nos disse que se não levássemos a sério os nossos estudos, se não respeitássemos os nossos professores, cumpriríamos o projeto que visava a destruição da educação pública e a nossa exploração como mão de obra barata. 

Foi naquela sala quente, na sexta série B, na escola cercada de fábricas, que pela primeira vez ouvi um professor falar da Teoria da Evolução. Professor Jacomo apresentou o velho Charles para mim e meus amigos de um jeito bonito e comovente. Na aula sobre a origem da vida, ele fez um modelo de giz colorido na lousa ilustrando como a partir de gases naturais, agregados de carbono, nitrogênio, oxigênio e hidrogênio teriam surgido os primeiros peptídeos e que esses em determinado momento passaram a se replicar, até que surgiu vida, feita de mágica aleatória.  

Eu já tinha um tipo de paixão pela ciência, a partir de então eu e ela estávamos mais pertinho, conduzidos pela mão do mestre, que também fazia surgir vida: com o giz na lousa perante quarenta adolescentes numa sala de aula na periferia da metrópole.

Com o tempo, classe e professor foram se aproximando, fomos nos entendendo. Ele coordenou a apresentação de nossa turma na festa da primavera. Os jovens bravos do início do ano nos apresentamos fantasiados de margaridas. Ele lançou sementes bonitas em nós todos, assim outras primaveras foram possíveis. 

Mas o mundo foi girando, anos depois quando passei a estudar Medicina as aulas de Jacomo fizeram ainda mais sentido para mim. Resolvi escrever uma carta de agradecimento e fui até a escola Gualter da Silva, que alguém me disse que ele dirigia; ninguém me deu notícia, disseram que ele não trabalhava mais lá. Voltei com a carta para casa e não sei o que fiz com ela.

Felizmente encontrei o meu professor na rede social muitos anos depois e voltamos a nos falar. Eu agradeci pelas sementes que ele lançou por aqui, e ele demonstrou satisfação. O homem reproduzia textos que eu escrevia, entrevistas que eu oferecia, com o preâmbulo: “o doutor foi meu aluno”.

Há poucos meses a esposa de Jacomo faleceu, nós falamos sobre sentimentos e condolências, ele ainda vivia o luto quando morreu. Talvez por isso engasguei, naquele momento em que soube de sua morte. Chorei no corredor repetindo: obrigado, obrigado, obrigado.

Nesse dia dos professores, em nome de sua memória, querido Jacomo Facio Neto, agradeço às professoras e aos professores que colaboraram com minha formação. Agradeço também a todos os educadores que insistem em semear, que resistem à barbárie, e nos dão esperança no porvir. A educação promove milagres, graças a profissionais que vão além das limitações materiais, da falta de reconhecimento, de condições precárias de trabalho para fazerem surgir e multiplicar a vida. Haja sementes, há primavera!

 

 

 

]]>
0
O jeito de morrer uma estrela na pandemia https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/08/26/o-jeito-de-morrer-uma-estrela-na-pandemia/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/08/26/o-jeito-de-morrer-uma-estrela-na-pandemia/#respond Fri, 27 Aug 2021 02:19:24 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/Kepler-Supernova-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=119 Nos dias da chamada segunda onda de Covid-19 no Brasil, Desirée chegou à emergência trazida pelo SAMU, desacompanhada, numa tarde sem muito sol. Altiva em seus oitenta anos, com as sobrancelhas perfeitamente delineadas, envoltas a algumas rugas e manchas acastanhadas pela pele branca. Cansada, saturação de sessenta por cento, extremidades frias e azuladas, ela melhorou razoavelmente com uma máscara não reinalante e dez litros de oxigênio por minuto. A frequência respiratória ainda estava elevada mas as saturação ficou por volta de noventa.

Um quadro gripal se instalara havia uma semana, passara três dias sem conseguir sair do sofá, algo prostrada, era mais uma pessoa infectada pelo coronavírus. Morava sozinha, estava isolada. Família?  Tinha uma filha já com seus sessenta anos, mas não se visitavam nem antes da pandemia. 

Por que demorou tanto pra pedir ajuda?

Porque já sabia que ia morrer. 

Como assim? Um dia todos vamos morrer. Mas essa doença é aguda, é possível tentar tratar.

Você sabe que eu não tenho chance. Fala a verdade? Eu tenho chance?

Seu quadro é grave, mas dá pra dar remédio e tentar desinflamar o pulmão, dar oxigênio. Se precisar a gente pode intubar e levar pra unidade de terapia intensiva.

Intubar é colocar aquele tubo pela boca e ligar naquele aparelho?

Sim!

De jeito nenhum! Doutor, eu me apresentei até em Paris, eu sou uma estrela. Isso é jeito de morrer uma estrela? Com esse negócio na boca? Numa máquina dessas? Largada numa UTI que nem minha irmã? 

O que a senhora quer que eu faça?

Um guaraná! Me arruma um guaraná que eu te dou cinquenta reais. Eu só preciso de um guaraná geladinho com uma fatia de laranja!

Eu recusei a oferta, mas busquei à revelia dos protocolos, o guaraná gelado com a fatia de laranja desejado por Desirée. Na saída do pronto-socorro encontrei a sua filha.

Sua mãe está grave, com risco de morte imediato, mas estamos cuidando dela.

Quero que faça tudo! Não tem vaga de UTI?

Eu respeito seu sofrimento, mas Desisée está consciente, bem orientada, ela não autorizou que fizéssemos procedimentos invasivos, e também disse que não quer ir pra UTI.

Eu exijo! Se você não salvar minha mãe eu vou processar você, o hospital, todo mundo!

Retorno à emergência, Desirée toma o guaraná pelo canudinho com algum esforço.

Sua filha disse que vai me processar se eu não mandar a senhora pra UTI.

O quê? Eu tive doze filhos felinos e uma humana. Ela é a pior. Isso é remorso… lembrou que tem mãe? Eu não quero! Ainda mais se sair daqui dependendo dela. Minha vida foi muito boa, não queria pegar essa desgraça, mas está tudo certo!

Na saída do plantão consegui um cateter de alto-fluxo e deixei Desirée algo mais confortável. Escrevi no prontuário os desejos de Desirée e passei o caso.

No dia seguinte retornei ao hospital, mas não encontrei Desirée. Olhando para o leito vazio, lembrei Carl Sagan em Cosmos, dizendo que todos nós somos feitos de poeira de estrelas mortas. Que a vida é feita estrelas mortas. Dediquei esse pensamento à Desirée que devolvia ao universo a matéria.

Algumas semanas depois chegou uma notificação a meu respeito, direto da ouvidoria do hospital, fui chamado para tomar ciência, era da filha de Desirée.

Um bilhete, escrito com caneta tinteiro trazia a sentença:

Doutor, estou ainda abatida pela morte de minha mãe. Não tem sido fácil. Peço desculpas por ter te destratado no momento em que cuidava dela, receba essa rosa com agradecimento – até sempre. 

 

 

]]>
0
A jornada do cirurgião Valdir Zamboni https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/15/a-jornada-do-cirurgiao-valdir-zamboni/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/15/a-jornada-do-cirurgiao-valdir-zamboni/#respond Wed, 16 Jun 2021 01:55:50 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/6C1D2558-974A-45D2-8CA4-1AA282A84A57-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=111 Peito de aço! Eu, interninho, ficava impressionado com o cirurgião do trauma, cabelos já cor de cinza, que falava de braços abertos, chamando atenção dos residentes. Presta atenção! Presta atenção!

Ágil e seguro na sala de emergência, capaz de abrir um tórax em segundos, a turma dizia que ele era o cirurgião do Rally dos Sertões. Pense num cara entubando um paciente traumatizado na beira de uma estrada de areia – no nada?!

Alguns anos depois, eu já formado fui aprovado em concurso para ser médico no Hospital Universitário, lá estava Valdir Zamboni, meu velho professor, agora colega de plantão no mesmo pronto-socorro: um cirurgião que gosta de operar, que não posterga, que põe na mesa. Um médico que não abandona seu paciente, um exemplo.

Durante a pandemia destacamos no pronto-socorro uma área para atender casos suspeitos de Covid-19. Lá estava eu no balcão deste distinto local quando o Zamba saiu de um consultório. Fazendo muitos senões, passou em atendimento com um colega, estava infectado pelo coronavírus, era leve no momento. Ele se despediu reclamando de leve por precisar se afastar do hospital.

Quatro dias depois disseram no grupo de WhatsApp que o homem voltou grave, e fora transferido para unidade de terapia intensiva do Hospital das Clínicas com insuficiência respiratória refratária.

Desacordado, sedado, ligado a aparelhos para respirar, permaneceu por oitenta e oito dias. A gente pedia notícia e percebia faces de pesar, a ponto de nos questionarmos se ainda veríamos nosso amigo.

Desligada a sedação, o homem não acordou por dias. O que aconteceu?

Um dia, eu passando visita no serviço de infectologia do Instituto de Rebilitação Lucy Montoro observei a ficha de um novo paciente: Valdir Zamboni.

Ao quarto, encontro o homem: usava um cateter de oxigênio com baixo fluxo. Comprimiu os olhos, me reconheceu, sorriu, e quando eu me aproximei ele chorou. Fez questão de gravar uma mensagem bonita pra nossos companheiros de trabalho. Eu vou me recuperar! Eu ainda vou voltar pro HU! Ele dizia.

Após algumas semanas o velho Zamba recebeu alta do Lucy, com uma melhora considerável e ascendente. Desde então não o via pessoalmente.

Hoje recebi notícias de Zamboni. Ele retornou ao Hospital Universitário para fazer o que Maia sabe: atender doentes, operar e ensinar aos mais jovens com seu exemplo e com suas palavras: presta atenção! Presta atenção! Viva!

 

 

]]>
0
Dengue grave: uma parábola sobre uma doença negligenciada https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/05/01/dengue-grave-uma-parabola-sobre-uma-doenca-negligenciada/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/05/01/dengue-grave-uma-parabola-sobre-uma-doenca-negligenciada/#respond Sat, 01 May 2021 13:01:27 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/Jovem-médica-chorando-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=65 Essa é uma história de alguns anos atrás, mas poderia ser do último verão.

A interna Maria chega para o plantão noturno na emergência do hospital universitário, ela atenderia casos triados a partir da porta do pronto socorro. Primeira ficha: avalia Rute, vinte e quatro anos, assim como ela.

A paciente tem febre há dois dias, dor difusa: na cabeça, nos músculos e articulações, sem sintomas respiratórios: não é síndrome gripal. Sem alterações nos diversos aparelhos, pressão arterial e sinais vitais todos normais. A hipótese mais provável nessas latitudes é dengue, mas pode ser outras doenças virais. Após discutir com Alberto, o médico assistente, a interna recomenda Rute a procura da Unidade Básica de Saúde para coleta de sorologia de dengue e orienta sinais de alarme para retorno à emergência, reforça que a ela não deve tomar AAS ou anti-inflamatórios, só analgésicos simples e muita hidratação. Em tempo, caso o quadro não se altere, deve ser reavaliada em até 48 horas.

É uma virose! Não conseguimos distinguir exatamente qual nesta avaliação, mas vale a pena fazer teste de dengue e observar se surgem sintomas respiratórios.

Destaque meu: viroses são doenças causadas por vírus, a maioria com boa evolução em poucos dias, sem tratamentos específicos disponíveis. Algumas, entretanto, podem evoluir com formas graves, como Covid-19, influenza e dengue, por exemplo.

Judite, a irmã que acompanhava a paciente se despede olhando para baixo e repetindo para si: virose! Virose! Virose!

Dez dias depois Maria retorna ao plantão, solicitaram que atendesse uma jovem que estava abalada porque perdeu alguém da família, que tinha acabado de morrer na unidade de terapia intensiva.

Na sala de atendimento encontra uma jovem de debruçada com a cabeça encostada na mesa.

Você!

Judite! O que aconteceu?

Foi você! Minha irmã está morta e a culpa é sua. Você disse que era uma virose!

Maria respira fundo, ensaia resposta, mas não consegue falar. Respira mais fundo, procura os sentidos, palavras não surgem — só soluços e lágrimas. Assim, ela chega à sala de discussão.

O que houve?

A paciente que atendi na semana passada morreu! A irmã… a irmã dela… a irmã dela disse que a culpa é mi-nha.

Ela se encolhe e se recolhe atrás das lentes embaçadas de seus óculos, permanece parada na cadeira, atônita.

A irmã sofria seu luto imediato pela perda de Rute. Disse que no dia seguinte à avaliação no pronto socorro resolveram ir a um sítio, próximo de uma represa, acharam que ela se recuperaria longe do estresse da cidade. O exame de dengue ficou para outro momento. E a procura de serviço médico só aconteceu sete dias depois quando a irmã ficou inconsciente. No hospital da pequena cidade que lhe acolheu observaram o sangue incoagulável, a pressão muito baixa. Felizmente houve meios de transferi-la para a UTI de nosso serviço, infelizmente não foi possível reverter o seu quadro de disfunções nos diversos aparelhos e impedir a sua morte.

Judite até hoje vive seu luto. Maria retornou para suas atividades e se formou, mas refutou fazer qualquer especialidade em que tivesse contato direto com pacientes. Alberto pediu afastamento do pronto-socorro, e os mosquitos Aedes se multiplicam livremente, carregando o vírus da dengue pelos territórios em situações de urbanização caótica. Não tem vacina eficaz, não há centenas de grupos procurando tratamentos específicos. A dengue é uma doença de populações negligenciadas, não para a economia, não fecha portos, e produz mortes sobretudo nas periferias das cidades e do mundo.

 

 

 

]]>
0
Pais e filhos: sobre o meu pai internado com Covid-19 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/04/15/pais-e-filhos-sobre-o-meu-pai-internado-com-covid-19/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/04/15/pais-e-filhos-sobre-o-meu-pai-internado-com-covid-19/#respond Thu, 15 Apr 2021 13:41:27 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/homem-internado-com-Covid-19-usa-cateter-de-alto-fluxo-de-O2-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=51 Estátuas e cofres. Minha filha de 6 anos me olhou nos olhos antes da saída para o hospital, ela sabe que o papai trabalha na emergência atendendo casos de Covid-19.

Papai, você vai voltar?

Papai, você vai voltar?! Eu fiquei de cócoras, mirei seus olhinhos e falei a verdade como me ocorreu: nenhum papai sabe se vai voltar quando sai de casa.

Papai, por que as pessoas morrem?

Ninguém sabe o que aconteceu. Enquanto eu atendia pessoas doentes no pronto socorro observei uma ligação não atendida de meu pai. Nesses dias, chamada perdida sempre deixa alguma angústia. Retorno. Meu pai estava com febre, tosse e algum desconforto na garganta. Síndrome gripal. Recomendei que notificasse o seu médico e solicitasse uma teleconsulta, também sugeri que fizesse um teste no dia seguinte, o terceiro do quadro. O exame confirmou: meu pai estava com Covid-19.

Nada fácil de entender. Papai ficou em isolamento domiciliar, eu projetava que ele provavelmente teria um quadro brando e  brigava com presságios ruins que apareciam a me desafiar. Tentei não dar uma de médico de meu pai. 

Um dia, na primeira olhada no celular, soube pelo Claudemir que o nosso querido Raimundo tinha morrido de Covid-19. Lembrei do homem me recebendo em sua casa no Rio Bonito em muitos sábados, eu brincava com seus filhos e tomávamos sorvete de pistache comprado de uma vizinha. Recordei também de Raimundo e Zefa dançando um forrozinho cadenciado, abraçadinhos, a tarde toda de um lado pro outro em menos de um metro de chão. Enquanto eu passava visita de controle de infecção na UTI da neonatologia desconcentrei, quando Silvia me pediu opinião sobre um antibiótico eu simplesmente não tinha ouvido o caso, estava com os olhos cheios, com meus sentimentos em Raimundo, em Zefa e em meu pai também, que estava bem até aquele momento.

Após o oitavo dia de doença meu pai teve uma piora discreta. Não precisaria de oxigênio nem de hospitalização imediata, mas no décimo terceiro dia ele ficou cansadíssimo, a saturação de oxigênio despencou e ele foi levado para uma emergência.

No serviço que meu pai procurou felizmente havia leito para internação, a princípio na enfermaria. 

Quando cheguei em casa, a minha filha me cobrou satisfações.

Posso saber onde o senhor estava que chegou tão tarde?

Estava acompanhando o caso de meu pai que foi internado com Covid.

O vovô foi internado com coronavírus? Diz a verdade! Ele está intubado?

Não, ele não estava intubado. No primeiro dia ficou com cateter com 3 litros de oxigênio, no dia seguinte teve uma piora respiratória significativa e precisou de máscara não reinalante com 10 litros de oxigênio, a médica assistente me falou sobre deixar a UTI de sobreaviso.

Chegaram notícias pesadas. O cunhado de minha tia morreu numa UPA no litoral, a tia de uma prima morreu numa UPA na Zona Leste de São Paulo, ambos aguardando vagas de terapia intensiva. 

Explica a grande fúria do mundo? Eu dei entrevista e escrevi algo sobre as falácias dos chamados tratamentos precoces e kit-Covid. Entre algumas reações negativas nas redes sociais, fanáticos testam: e se fosse seu pai? Você não daria? E se fosse seu pai? E se fosse meu pai?! Não, eu não daria e não admitiria que algum médico prescrevesse medicamento contra malária ou verme para meu pai com uma doença viral.

Dorme agora. Nesses dias carimbei uma declaração de óbito dolorida, causa básica: Covid-19. Atendemos Percival em um espaço improvisado como unidade de terapia intensiva, com recursos longe dos ideais no momento de explosão de casos. Percival morreu. Mesma idade de meu pai. Quando dei a notícia no espaço ecumênico do hospital as filhas entraram em prantos.

Meu pai era um idoso forte e saudável, cuidava dos netos, era o centro da família. Morrer assim?! Morrer por isso?! A filha mais velha falava rápido tentando se conectar com suas ideias, a mais nova só soluçava. Eu olhei para interna que me acompanhava, Joana estava consternada,  mais intensamente quando as filhas agradeceram por tudo o que fizemos, e nós tínhamos ideia de que em uma estrutura ideal possivelmente podíamos ter feito mais, provavelmente não alteraria o desfecho, mesmo assim nos frustramos e choramos com as órfãs.

Estou com medo. Nos dias seguintes o quadro de meu pai se mantinha grave do ponto de vista respiratório, porém sem alterações nos demais aparelhos. Era esperar o pulmão desinflamar.

Quero colo. Depois de uma semana de internação, quando parecia não haver mais novidades, o meu pai teve uma mudança no quadro. Felizmente começou a melhorar e usar menos oxigênio a cada dia. No segundo sábado após sua internação eu fui buscá-lo. Alta hospitalar. Com algum cansaço ao se esforçar e com os olhos brilhando ele disse: filho eu te amo. Painho eu te amo. Vocês precisavam ver a cara de rapazinho apaixonado que ele fez quando reencontrou a minha mãe no saguão do hospital!

São meus filhos que tomam conta de mim. As crianças dançaram, pularam e gritaram quando souberam que o vovô estava de alta. Lembrei de quando eu falei para minha filha, a Menina Mais Velha, quando ela me perguntou por que as pessoas morrem. Tudo o que faz parte de seu corpinho e de meu corpo já estava nesse mundo desde a formação do planeta. Nós somos feitos, essencialmente, de pedaços de carbono e de amor. Só existimos porque outros seres vivos morreram e nos permitiram usar o carbono que estava em seus corpos, um dia precisamos devolver esses elementos para a natureza, assim, outras formas de vida surgirão com essas partes de nós. O amor permanece. Posso dormir aqui com vocês? Ela dormiu bem no meu peito, perguntando se poderia ser um passarinho ou cachorrinho e sorriu levinha quando eu disse que sim. Eu permaneci pensando nas mortes evitáveis da pandemia, embora não duvide do propósito da sentença apresentada.

É preciso amar. Pensei nos últimos dias que eu poderia receber uma declaração de óbito como as que tive que carimbar, assinar e distribuir. Meu pai voltou! Eu sou profundamente grato a cada pessoa que participou de seu cuidado. Agora imagino nós dois de cabelos grisalhos, assistindo jogos do São Paulo, abraçados como não temos podido estar nos últimos tempos. 

Lamento profundamente por todos os que perderam seus pais e seus amores nesse tempo de pandemia, para o vírus ou para as mentiras. 

Em nome de Zefa, Paulo, Renê e toda a família de meu amigo Raimundo, apresento meus sentimentos a cada uma das pessoas que perderam seus amores mortos com Covid-19 e não tiveram sequer a possibilidade de despedida.

(Esse texto tem trechos da letra de “Pais e filhos” de autoria de Renato Russo)

]]>
0
O amigo Pet Fly: sobre crianças em tempos de distanciamento https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/04/08/o-amigo-pet-fly-sobre-criancas-e-isolamento/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/04/08/o-amigo-pet-fly-sobre-criancas-e-isolamento/#respond Thu, 08 Apr 2021 17:38:33 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/5023FC73-A4D1-4911-A1B1-43604A12ADA9-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=42 Preparação para plantão noturno. Horas antes começa a tensão, as crianças demandam carinho e perguntam da maneira mais direta possível: os pacientes são mais importantes do que nós? A gente tenta olhar nos olhos com alguns desvios, pedindo permissão de novo, e recebemos um “tá bem” pouco convicto. Essa é a rotina, desde que eles aprendem na escolinha que sábado e domingo são dias da família.

No distanciamento, as demandas afetivas são ainda mais prementes. Em casa de casal de médicos, imaginem. As crianças além das contingências que incidem sobre todos os pequenos, acabam decorando dados epidemiológicos, clínicos, tem opiniões sobre as estratégias mais efetivas para o controle da pandemia e sobre o que os pais deveriam fazer e não fazer na linha de frente.

A Menina Mais Velha, 6 anos, gosta de biologia, é uma pequena pesquisadora, passa períodos mexendo em potes de vidro e misturando soluções, pediu para eu arrumar na universidade material de laboratório de verdade, sem uso, para a sua pesquisa sobre a cura da Covid-19. Ela quer ser cientista e médica de família, como a mamãe, e dar entrevistas para a televisão sobre como enfrentar o coronavírus. O Menino Mais Novo tem 4 anos, é um poema concreto e gosta de matemática. Quando as aulas foram suspensas, ele ficou muito calado, quase sem querer brincar, pelos cantos, havia tempos que nem a Menina Mais Velha conseguia lhe motivar. Ele sequer entrava no elevador e não cogitava ultrapassar o portão do prédio. 

Quem pega coronavírus fica sozinho no hospital! Eu tenho medo! Ele se aquietava, amuado.

Quando eu ligava por videochamada do plantão do hospital, todo paramentado, para dar boa noite, a Menina Mais Velha respondia com animação, o Menino Mais Novo não demonstrava maior confiança. Certas vezes ele até dizia: preferia que você estivesse aqui.

Quando aparecia algum ser vivo, virava companheiro. Foi por isso que o Menino Mais Novo brigou com irmã quando ela pegou um chinelo para deter um inseto. Não mate o Senhor Mosquito, ele é meu amiguinho! Uma joaninha que apareceu na varanda virou bichinho de estimação, chamada Joana-a-joaninha-intinerante após desaparecer na manhã seguinte e uma aranha que vive num jardim da praça ao lado, eventualmente observada, foi batizada de Dona Teiúda. 

O Menino Mais Novo ficou algo mais tranquilo quando um garoto surgiu em nosso prédio e começou a frequentar a nossa casa.  Eles não paravam de brincar juntos, chutavam bolas nas portas do apartamento a endoidar os vizinhos, jogavam xadrez de plástico, pulavam corda, ficavam trocando segredos debaixo da cama.

Agora era muito fácil ver o Menino Mais Novo alegre, sorridente, gargalhando com seu novo melhor amigo. O nome dele, ou apelido, é Pet Fly. A família inteira dele, lamentavelmente, tinha morrido. Foi o que as crianças nos disseram. Nós o acolhemos de bom grado.

De vez em quando eles desapareciam e a gente não sabia onde eles se escondiam, quando eu perguntava ao Menino Mais Novo onde eles tinham se enfiado ele dizia – o Pet Fly me ensinou a me teletransportar! 

Eu os imagino viajando pelo espaço-tempo: brincando com dinossauros, explorando castelos medievais, jogando pedra na cabeça de Isaac Newton descansando em baixo da macieira e fazendo outras outras peraltices. Fato é que o Menino Mais Novo agora estava alegre motivado no brincar e pintar. Menina Mais Velha recebeu o amigo de bom grado, e mesmo eventualmente tendo algum ciúme pelo irmão, na maior parte do tempo lhe tratava com amenidade. Pet Fly passou a sentar-se à mesa e a passar noites conosco.

Tempos atrás, antes da breve reabertura das escolas observamos o Menino Mais Novo mais taciturno. Olhando pela fresta de seu quarto, a observar conversa alheia como a boa etiqueta desaconselha, vi os meninos sérios. Meu filho falava para seu amigo, sentados na cama, com alguma gravidade. 

Pet Fly, eu vou precisar ir pra escola. Só que você não vai poder ir! Você precisa me esperar em casa, porque lá eles não aceitam crianças como você… assim: imaginárias!

]]>
0
Sobre esperar um amor em tempos de pandemia https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/03/30/sobre-esperar-um-amor-em-tempos-de-pandemia/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/03/30/sobre-esperar-um-amor-em-tempos-de-pandemia/#respond Wed, 31 Mar 2021 02:15:25 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/casal-de-mãos-dadas-na-pendemia-de-Covid-19-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=26 Eu sugeri no texto de estreia nesta Folha, que contaria uma história de amor, por isso acho que fiquei devendo algo aos leitores. Desta vez, espero ficar menos distante.

Lembre-se de um casal bonitinho, fofo, daqueles grudadinhos mesmo. Assim eram Dario e Dalila: fechadinhos! Eles andavam abraçados, trocando beijos e falando que nem criança um com o outro.

Durante o ano I da pandemia, para minha ingrata surpresa, meu amigo me ligou dizendo que tinham se separado. Ela não quis mais, ele chorou.

Há algumas semanas, Dalila me mandou mensagem preocupada com seus pais, ambos com Covid-19. O pai, de sessenta e poucos, inteirão, mestre de artes marciais preocupava mais pela queda da saturação de oxigênio. Ficamos de conversar no dia seguinte, mas ele piorou à noite e estiveram no hospital. Colheu exames complementares, fez tomografia de tórax, não havia nada que indicasse internação, prevaleceu a alta para observação em casa.

Poucos dias depois Dalila voltou a me procurar, WhatsApp brilhando. O pai piorou: saturação de noventa por cento.

Sugiro hospital, oxigênio e corticoide.

Estamos indo já.

No dia seguinte eu estava no hospital, desta vez na rotina de controle de infecção hospitalar: planilhas, treinamentos, avaliação das prescrições de antibióticos por outros médicos. O telefone toca insistentemente. Não consigo atender nesse momento. Chega mensagem, dessa vez é Dario.

Estou preocupado com a Dalila.

Os pais dela estão doentes, estou preocupado também.

Soube que ela está em aí na emergência de seu hospital com Covid, aguardando transferência!

Dalila? Ontem ela me disse que levaria o pai para o hospital!

Ela levou os pais para uma emergência do plano de saúde deles. Ambos precisaram de oxigênio e internação. Consta que também não conseguiam desgrudar as mãos. Dalila tossia na frente da enfermeira que insistiu em fazer uma medida da saturação de oxigênio. Quando colocou o aparelhinho no dedo, constatou-se que Dalila estava com a saturação pior do que os pais. De lá veio para o nosso serviço porque não tinha plano privado que permitisse permanecer com sua família.

À tarde eu estava na Linha de Frente. Na emergência, encontrei Dalila em um leito semi-improvisado em um consultório usando um cateter de oxigênio, monitorizada, aflita.

Querida! Não disse nada sobre estar passando mal, só seus pais!

Estava tão preocupada com os pais que mais nada percebia.

Eu a avalio brevemente, checo os exames. A equipe da ambulância chega para transferência.

Vai ficar tudo bem?

Os seus exames indicam uma boa evolução! Esperamos! Espero que seus pais fiquem bem também.

Obrigada!

Tem uma coisa: Dario quer saber como você está. Curioso! Fica me mandando mensagem. Você é a paciente, só digo o que você autorizar.

O olho de Dalila brilha algo mais marejante, ela morde o lábio inferior e respira fundo.

Diz tudo pra ele! Sabe de uma coisa? Eu ainda amo muito o Dario!

E assim foi conduzida na maca até a ambulância, com luzes vermelhas reluzindo em seus olhos úmidos.

O rapaz me demanda.

Como está Dalila?

Quer saber se eu a vi. Ligo pro cara.

Fala da Dalila!

Ela me autorizou a falar do quadro dela: está estável. Precisando de pouco oxigênio.

Exames de rins e coagulação estão bons, na tomografia não tinha nada de mais. É um quadro moderado, ela vai sair!

Que bom, cara, que bom!

Ela não me autorizou mas eu vou dizer uma coisa!

Não vai chorar?

Não, cara!

Ela disse que te ama, ainda te ama muito!

Dario começou a soluçar, desligou o telefone e até agora chora, esperante.

]]>
0
Um dia nos limites entre a vida e a morte: a linha de frente da Covid-19 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/03/23/um-dia-nos-limites-entre-a-vida-e-a-morte-a-linha-de-frente-da-covid-19/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/03/23/um-dia-nos-limites-entre-a-vida-e-a-morte-a-linha-de-frente-da-covid-19/#respond Wed, 24 Mar 2021 02:15:07 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/estreia-linha-de-frente-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=12

Este é um convite para você observar, a partir do ponto de vista de quem vive sobre a transição entre a doença e a cura, nos limites entre a vida e a morte, ainda mais densos neste período de pandemia, a chamada Linha de Frente.

Pensei nos últimos dias qual seria a melhor maneira de estrear nesta Folha, com histórias que brotam nas salas de emergência e terapia intensiva, onde sobrevivo entre diagnósticos improváveis e situações inusitadas. Pensei honestamente em contar uma fábula de amor, talvez até fugindo do propósito desta página. Resolvi, entretanto, compartilhar o relato de um dia, neste período que é o pior da pandemia (até agora), como se fosse uma página rasgada de diário.

Ainda não há sol quando pego o caminho do trabalho. Assumo o meu lugar: médico responsável pela emergência dedicada à Covid-19. A interna é estudante no final do curso de medicina. Ela foi minha aluna no segundo ano, é inteligente e dedicada. Gosto dela desde quando a ensinei a aferir pressão arterial e o lado correto de usar o estetoscópio. Joana I6 (interna do 6º ano) quer ser emergencista.

Três residentes compõem o time do dia: Jorge R1 (residente do 1º ano) veio de um país vizinho se especializar no Brasil em medicina esportiva; Mariana R1 veio de uma capital do Nordeste para estudar acupuntura, Maurício R2 (residente do 2º ano), de medicina interna, está na última etapa da metamorfose e é incumbido de cuidar dos casos mais graves. Eu organizo as triagens e discuto as condutas, os ensino a fazerem os procedimentos mais complicados e manejo as vias aéreas.

Encontro o pronto-socorro superlotado, com poucos pontos de oxigênio. A sala de emergência contém duas vidas instáveis; os demais com quadros menos graves usam oxigênio em cilindros que se esvaem rapidamente. Não há macas disponíveis na observação, e o último paciente trazido pelo Samu ficou com a maca da ambulância. Discutimos alternativas: é necessário criar leitos onde não existem, é preciso, é urgente.

As notícias chegam no celular, falam de iminência de colapso do sistema. Como assim iminência?

Meu WhatsApp não para. Chega a notícia de meu primo, filho de meu padrinho, rapaz de 35 anos que está intubado numa UTI em Salvador. Felizmente as notícias são boas dentro do possível. Estável.

Estável é uma grande notícia nos dias atuais. Esboço um sorriso lembrando de Marquinho pequeno, com as bochechas proeminentes. Fecho os olhos e tento me conectar com minha madrinha e meu padrinho, mandando um bom sentimento e me sentindo mal por não pode fazer mais.

Ligo na UTI de meu hospital para saber de João, homem de 49 anos que intubei há dois dias. Ao perguntar sobre a sua exposição, ele me disse: doutor, sou trabalhador, não pude parar. Pediu que eu garantisse que sua filha teria notícias dele. Antes da sedação me disse: doutor, não me deixe morrer, não me deixe morrer! O procedimento foi executado sem intercorrências, e eu falei pessoalmente para Kimberly que seu pai a amava muito e pediu para lhe dar notícias. Agora João estava com insuficiência renal cada vez mais grave, com chance menor de sobreviver.

Uma das almas na sala de emergência pertence a Leopoldo, 84 anos, com pouca alteração de mobilidade por causa de um acidente vascular encefálico. Fora isso era um velhinho pleno. Foi admitido com síndrome respiratória aguda grave, necessitando de altos fluxos de oxigênio. Mauricio R2 esclareceu sobre a gravidade e o risco de morte, falou da possibilidade de intubação, explicou o que seria ser mantido vivo graças à máquina de respirar. Leopoldo foi taxativo: não queria morrer numa máquina dessas, não queria ser submetido a esse sofrimento, e a família concordou –haja analgesia e cuidado.

Joana I6 aprende com Maurício R2 a ajustar o ventilador mecânico de Juarez, intubado, aguardando uma vaga de UTI improvável. O residente se esforça para cuidar dos doentes e compartilhar o seu conhecimento; ela apreende e reproduz.

Jorge R1 cuida do senhor Yoshi que está com um quadro respiratório atípico esperando o resultado de tomografia. Abrimos juntos a tomografia: sem sinais de Covid-19… O diagnóstico era outro. Os olhos de Jorge R1, no seu 1,90 m, se encharcam. É empatia que chama. O filho de Yoshi quer que contemos apenas para ele o diagnóstico do pai; dizemos que não podemos omitir os resultados de uma pessoa, se ela quer saber não é ético. Jorge R1 engasga e não consegue dizer a Yoshi o que se passa com ele. Eu assumo a palavra e digo de uma forma que ele possa compreender: é câncer de pulmão com metástases. Encaminhamos para oncologia e tentamos amenizar, mesmo quando isso não é possível. Jorge R1 pede para tomar uma água. Permitido! Ele se afasta de cabeça baixa falando consigo mesmo.

Mariana R1 aproveita suas habilidades com as agulhas e colhe as gasometrias. Conta de sua mudança para São Paulo neste caos, mas lá também estava o caos. Onde não estava? Ela trata de uma paciente com dor no tórax. Não era coronavírus, não era embolia, era dor da angústia que dói no corpo e na alma.

Chega uma ambulância do Samu com mais uma paciente com suspeita de Covid-19, eu aviso à regulação: não tem leito, não tem maca, não tem ponto de oxigênio. Tenso e com alguma vergonha aviso ao colega que não temos condição de recebê-la. Eles dão meia-volta e procuram outro destino.

Anselmo está em observação, com ventilação não invasiva. O celular dele toca sem parar. Horas depois, já com catéter nasal, ele toma uma bronca da esposa pelo telefone. Eu vou te matar! Por que não deu notícia?!. Não podia falar por causa da máscara! Não importa, dê seus pulos! O povo acha graça e ele dá uma piscadela.

Leopoldo piora muito, Maurício R2 liga para a família e os avisa da iminência da morte. Em minutos chegam dois filhos, uma filha e a esposa. O protocolo não permite despedidas. Rasguem-se os protocolos. Paula, a enfermeira da unidade, assente. E se estivesse no lugar deles? Máscara para todos, eles o observam através de janela de acrílico da sala emergência. Joana I6 de um lado, Maurício R2 do outro. Todos acenam um tchau ritmado, devagarinho, amoroso.  Amor, abre o olho! Adeus, papai! Muito obrigado, pai! Você foi o melhor pai do mundo! Vai com Deus, papai! A gente vai se encontrar em breve, meu amor! Por que ele não abre os olhos?

A família chora, as enfermeiras choram, Joana I6 e Maurício R2 choram, os pacientes que aguardam triagem choram. Eu, mais duro, pego mais uma ficha e chamo pelo nome.

Começo a explicar o fluxo –só atendemos casos graves. Enquanto falo concentrado para coordenar a respiração e as palavras, meus olhos me traem e inundam. O paciente não grave entende que precisa procurar uma unidade de pronto-atendimento e agradece.

Organizo a passagem de plantão, abro no computador a tela da central de regulação para checar as vagas oferecidas para os nossos pedidos: zero vagas cedidas no dia. Passamos os casos, com a retaguarda ainda mais cheia, inclusive com pessoas recebendo oxigênio em cadeiras enquanto aguardam maca.

Na saída do plantão um amigo pede suporte por mensagem de telefone. Eu digo que está difícil, mas tentaria ajudar. Ele só quer uma orientação: uma amiga nossa com Covid-19 foi encontrada morta em casa. Ele queria saber o que dizer às duas pessoas que encontraram o seu corpo e tentaram reanimar. Eu mando uma mensagem de áudio soluçada e tremida com algumas sugestões.

No carro, antes da partida, repasso brevemente o noticiário e observo os gráficos de evolução da pandemia: recorde de casos e mortes, como minha experiência sugeria. No caminho de casa costumo ouvir Bethânia, Milton ou Racionais, ao sabor do dia. Agora só o silêncio me abraçaria.

Em casa encontro minha família, todos tensos com o dia de confinamento. Agora eu e os filhotes nos embolamos. Eles exigem: papai, está na hora de nossa aventura, conta uma história da caatinga!

Eu apago a luz e narro coisas de minha infância em Cansanção, sertão da Bahia, tempos em que eu era invulnerável, brincava com onças, caçava lobisomens ferozes e presenciava as façanhas mágicas dos curadores. Aí encontro minha Cordisburgo ou invento minha Macondo. Com as crianças no peito, entre risadinhas e gritinhos de susto, eu pego no sono antes delas. Eu queria contar uma estória de amor. Quem sabe eu tenha contado alguma história de amor?

]]>
0