Linha de frente https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br É no hospital que as histórias de vida começam e terminam Sat, 25 Dec 2021 12:45:44 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Carlos Neder, presente! https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/25/carlos-neder-presente/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/25/carlos-neder-presente/#respond Sun, 26 Sep 2021 00:13:43 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/4DDF2C8A-48CB-48D4-8B3F-500786291891-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=150 No início dos anos 2000, durante a graduação em medicina na USP, eu participei da direção do Caoc (Centro Acadêmico Oswaldo Cruz). Nossa geração tinha grande orgulho de sermos sucessores de jovens que se engajaram na resistência à ditadura civil-militar brasileira, e passamos a promover encontros entre os estudantes da época com a chamada velha guarda, que dirigiu o Caoc entre os anos 1960 e 1970.

Foi num desses momentos que conheci Carlos Neder. Se vocês não estão lembrados, dá licença de falar, Carlos era de Campo Grande, ingressou na Fmusp em 1973 e recebeu a alcunha de Mato Grosso. Destaco: o Mato Grosso do Sul só foi criado em 1977.

O estudante Mato Grosso atuou no Caoc como diretor do departamento de pesquisas médicas e sociais. Entre suas atribuições, passou a frequentar comunidades carentes da Zona Leste onde, ao lado de seus companheiros da faculdade e orientados por jovens médicos atendia pessoas pobres no terreno de uma igreja e discutia política no território.

Essa militância estudantil foi decisiva para a organização de movimentos populares fundamentais à chamada reforma sanitária brasileira. Quando Neder se formou, não teve dúvidas de que se dedicaria à saúde pública e passou a trabalhar como sanitarista no extremo Leste de São Paulo, de onde seguiu lançando sementes, colaborando com a construção do que seria o nosso Sistema Único de Saúde, com a saúde sendo considerada direito de todos e dever do Estado na Constituição de 1988.

Neder foi secretário municipal de saúde na gestão de Luiza Erundina, vereador da capital e deputado estadual, mas ao falar de Carlos antes de citar qualquer cargo que ocupou, destaque-se um homem que nunca vacilou na defesa dos seus princípios éticos e morais, da democracia como caminho e do socialismo como horizonte. Suas convicções muitas vezes lhe custaram, dentro de um sistema político extremamente pragmático, com os parlamentares apartados de suas chamadas bases sociais, mas Neder sempre teve Mato Grosso, um jovem sonhador, orientando os seus caminhos.

Soube há algumas semanas que meu amigo estava com Covid-19, que fora internado, depois transferido para uma unidade de terapia intensiva, eram sucessivas notícias de agravamento de seu quadro clínico. Há dois dias soubemos que Carlos se encontrava numa situação irreversível, sob cuidados paliativos exclusivos. Confesso que as lágrimas me desafiaram, com tristeza pela iminência da perda de meu amigo, mas de alguma maneira contemporizado pelo fato dele ter o tratamento voltado para o alívio de qualquer sofrimento. Hoje soube que Carlos morreu, mas os semeadores deixam legados bonitos que terão consequências não apenas aqui e agora, mas também no porvir.

Meu amigo Carlos, superaremos essa pandemia, reencontraremos os caminhos para a construção do SUS, obra de sua vida e de tantas outras pessoas valorosas, haverá primavera e haverá memória.

Carlos Neder, presente!

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Queiroga é um ministro de cabeça abaixada e dedo erguido https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/21/queiroga-e-um-ministro-de-cabeca-abaixada-e-dedo-erguido/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/21/queiroga-e-um-ministro-de-cabeca-abaixada-e-dedo-erguido/#respond Tue, 21 Sep 2021 14:25:44 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/Marcelo-Queiroga-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=139 Era uma vez um governo acuado. Após demitir dois médicos experimentados em gestão, o presidente ofereceu o Ministério da Saúde a um General de sua mais elevada confiança, a sua missão seria deixar o vírus circular livremente, o que traria mortos (e daí?) mas também a chamada “imunidade de rebanho”, assim o país sairia da pandemia antes dos outros e o impacto econômico seria minimizado.

A tese defendida pelo governo, antiética e sem lastro científico mostrou-se equivocada e após centenas de milhares de mortos, da paralisação da capacidade produtiva do país, uma CPI passou a ameaçar o presidente. Tem que mudar isso aí! Encontraram alguém que tinha diploma de medicina, alguma projeção em sua especialidade e trânsito dentro da corporação médica.

Nas primeiras entrevistas como ministro, Marcelo Queiroga declarou de peito aberto que os posicionamentos de seu exercício ministerial seriam técnicos.

Não demorou muito para que o ministro ocupasse o palco da Comissão Parlamentar de Inquérito. Lá vimos um homem de fala embargada, ombros retraídos e cabeça baixa que, para a vergonha de Hipócrates e dos seguidores de seus preceitos, declarou que não tinha condições de julgar as políticas de governo que precederam sua presença no Ministério. Ao ser testado pelos Senadores, que procuraram nele algum senso republicano, Marcelo declarou que não tinha condições de censurar o presidente e agradecia a ele por ter lhe concedido a maior oportunidade sua vida. Oportunidade, oportunidade, oportunidade.

Após dar seguidas declarações contra a obrigatoriedade do uso de máscaras, na última semana, Queiroga orientou por ato de ofício a suspensão da vacinação de adolescentes, e ainda apelou às mães para que não vacinassem seus filhos com argumentos pseudocientíficos e inverdades, o Ministro tirou aos poucos e em definitivo a máscara de defensor da ciência.

Agora, Queiroga que faz parte do cortejo do único presidente que não recebeu vacina entre todos os presentes à 76a Assembleia-Geral da ONU, nos EUA, enfrenta com dedo médio erguido, pessoas que protestam contra as políticas do Governo que ele alegou de cabeça baixa que não tinha condições de julgar.

Indiferente ao desastre na condução do enfrentamento da pandemia, também por sua responsabilidade, que já resultou em quase 600 mil mortes confirmadas, Queiroga demonstra não ter limites para defender seu cargo e para retribuir a oportunidade que recebeu de Bolsonaro. Na Assembleia-Geral da ONU, Bolsonaro faz mais um discurso negacionista, que entrará para a história como exemplo vexaminoso, Marcelo Queiroga faz parte da claque que o aplaude.  Oportunidade, oportunidade, oportunidade.

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Manifestações a favor do descontrole da pandemia e do colapso econômico https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/07/manifestacoes-a-favor-do-descontrole-da-pandemia-e-do-colapso-economico/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/09/07/manifestacoes-a-favor-do-descontrole-da-pandemia-e-do-colapso-economico/#respond Tue, 07 Sep 2021 17:29:37 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/Protesto-bolsonarista-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=62 Um dos primeiros casos graves de Covid-19 que atendi, ainda em março de 2020, foi o de Edwiges, 44, negra. Ela trabalhava como cuidadora de idosos e estava na residência dos patrões num bairro rico, quando foi resgatada pela equipe do Samu, já em insuficiência respiratória.

A imagem da tomografia de tórax com pneumonia bilateral, foi suficiente para deixá-la em isolamento respiratório e para justificar a coleta do RT-PCR para o Sars-CoV-2. Eu solicitei transferência para uma UTI destacada para pessoas infectadas pelo coronavírus, mas ela não aguentaria aguardar sem ser intubada.  Expliquei o procedimento e ela assentiu com a cabeça, respirando rápido e superficialmente, mesmo com máscara de oxigênio com reservatório.

O fisioterapeuta, o enfermeiro e eu formamos um triângulo em volta da paciente. Bem posicionada, tudo checado. Sequencia rápida de intubação: analgésico para tirar a dor, sedativo para dormir, bloqueador neuromuscular para paralisar a respiração. Ela tinha uma via aérea difícil, mal dava para visualizar, mas felizmente, com os dispositivos apropriados, fizemos o procedimento adequadamente. Ao final do plantão, ela já estava admitida em UTI de referência para casos de Covid-19.

Em tempo de cuidar dos outros pacientes, tirei a paramentação e fui ver Salustiana, 56 anos, branca. Trabalhava como catadora de material reciclável e fora internada havia um dia com queimadura extensa. Vi aquele corpo frágil coberto de faixas. Ela queimou-se com álcool que usava para acender a lenha com que cozinhava em seu barraco numa comunidade vizinha ao hospital. Ela não tinha dinheiro para comprar gás de cozinha. Felizmente, o hospital do SUS de referência de cirurgia de grandes queimados tinha uma vaga para ela e aceitou a paciente prontamente.

A cena de Edwiges e Salustiana internadas na mesma unidade me revisita, sempre que emerge o falsa dicotomia entre priorizar o controle pandemia ou economia, dado que nosso povo adoece e morre em consequência de ambas as tragédias.

Daquele dia até hoje houve centenas de milhares de mortes, e aumento vertiginoso não apenas do gás de cozinha mas de diversos combustíveis e fontes de energia, além da fome e do desemprego — quantas vezes histórias como as de Edwiges e Salustiana se repetiram?

O Brasil, por culpa de suas maiores autoridades, com destaque para o presidente da República, falhou miseravelmente tanto no controle da Covid-19, quanto na gestão da economia. Em retrocessos não apenas institucionais, mas civilizatórios. Por isso, pergunto: em defesa de que manifestantes adotam uma agenda de ataques às instituições, à independência entre os Poderes da República e à própria democracia? Os que vão às ruas neste 7 de setembro em apoio ao governo Bolsonaro, o fazem a favor do descontrole da pandemia ou do colapso econômico? São favor da peste, da fome ou de ambas?

 

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Um casal de namorados na emergência respiratória https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/12/um-casal-de-namorados-na-emergencia-respiratoria/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/12/um-casal-de-namorados-na-emergencia-respiratoria/#respond Sat, 12 Jun 2021 23:03:52 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/Eugenio-Zampighi--300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=107 Um casal de namorados chega ao pronto-socorro de ambulância.

A enfermeira do SAMU, algo tensa, se aproxima para fazer a passagem do caso.

Suspeita de Covid! Chamado por falta de ar. Homem de oitenta e dois anos, na cena a saturação de oxigênio estava 47%.

Na maca vejo um senhor simpaticão de cabelo acaju, apesar do esforço respiratório, mesmo com uma máscara, ele sorri encarando uma distinta senhora de cabelos dourados e vestido elegante, o flerte chama a atenção dada a situação. 

Para sala de emergência. Monitoramos o homem, colocamos uma máscara não reinalante com reservatório de oxigênio. O esforço respiratório persiste. É melhor pegar a história com a acompanhante.

Bom dia, eu sou o médico responsável pelo caso do seu Alfredo, a senhora pode dizer o que aconteceu?

Doutor, esse homem tava muito solitário e acabou mudando pra minha casa pra passar a pandemia.

Ele tem alguma doença?

Não!

Ele precisa de ajuda pra alguma atividade diária?

Isso é danado!

Quando ele adoeceu?

Tem uns dez dias, começou com um resfriado. Dei chá! Mas tem uns três dias que piorou! Já pelejei pra trazer esse homem! Não queria… agora, morrendo… não levantou hoje, chamei o socorro.

Posso passar um parecer?

Sim!

Alfredo está muito grave, faltando oxigênio! Precisamos sedar e intubar. A senhora sabe o que isso significa?

Sei sim!  Tem chance de morrer?

Infelizmente sim.

Vixe! Será que não era bom avisar a esposa dele?

A senhora?

Eu tava quieta! A mulher dele é aquele tipo de pessoa possessiva… tratava ele mal. Pediu pra vir pra minha casa e eu acolhi, ué. Se o senhor quiser eu tenho o número dela. Só não vou ligar…

Vou perguntar pra ele, é melhor.

Seu Alfredo! Seu Alfredo! Nós vamos precisar intubar o senhor. O senhor sabe o que é isso?

S i m! F a ç a  o  q u e  p r e c i s a r,  d o u t o r!

O senhor deseja que a gente avise sua mulher?

A  D o r o t e i a?

Sua esposa e seus filhos…

A q u e l e s  n ã o! P o d e  d i z e r  p r a  e s s a  a í! F a z  f a v o r? – mira meus olhos.

D i z   p r a  D o r o t e i a  q u e  e l a  s i m  é  a  m u i é  d e  m i n h a  v i d a! Enquanto sussurra fecha os olhos com efeito do fentanil.

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Uma história sobre o retorno de doenças imunopreveníveis https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/05/uma-historia-sobre-hesitacao-vacinal/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/06/05/uma-historia-sobre-hesitacao-vacinal/#respond Sat, 05 Jun 2021 08:49:12 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/Captura-de-Tela-2021-06-05-às-05.38.49-300x215.png https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=99 Neste 5 de junho as unidades de saúde de São Paulo estarão abertas para vacinação contra a Covid-19, o objetivo é vacinar quem recebeu a primeira mas perdeu a segunda dose: somam-se mais de meio milhão de pessoas nesta condição, apenas neste estado.

Durante a pandemia, a hesitação vacinal cresce e as taxas de imunização caem com a disseminação de desinformações, como as autoridades que divulgam inverdades sobre a falta de segurança dos produtos oferecidos no Brasil, ultrapassando os limites da racionalidade quando um Senador da República perguntou ao diretor do Instituto Butantã se a Coronavac seria feita de “células de fetos abortados”, sendo prontamente esclarecido sobre o seu absurdo.

Considerei razoável contar uma história sobre outra doença imunoprevenível já erradicada, mas reintroduzida no Brasil nos últimos anos.

Um homem jovem com seus trinta e poucos anos, de rosto muito avermelhando e pele descascando comparece à consulta, vem acompanhado de uma mulher mais experiente.

Minha mãe pode entrar?

Claro que pode.

Ele se acomoda bem em minha frente, ela ajeita a cadeira no segundo plano. Enquanto ele narra a história de seu adoecimento, ela mantem o pescoço e olhos firmes me examinando.

Sarampo! O paciente já sabia o seu diagnóstico. Qual seria, então, o motivo da consulta?

É preciso saber, doutor, como depois de trinta anos foi aparecer esse sarampo?!

Então, nós tivemos o sarampo erradicado no Brasil em 2016, infelizmente a cobertura vacinal foi caindo, sabe como é? Tem gente que não se vacina! Além de ter muito posto fechado no país a fora com falta de verba e de equipe, tem muitas fakenews. Aí o vírus volta a circular. Mesmo a vacina tendo eficácia de 97% algumas pessoas vacinadas acabam sendo infectadas quando tem surtos.

O rapaz olha o chão, olha a janela, olha a mãe.

Sabe o que é, doutor? Eu criei meu filho longe dessas coisas artificiais da sociedade de consumo.

Como?

Essas doutrinações! O senhor sabia que as vacinas são perigosas. Essa do sarampo mesmo pode provocar problemas seríssimos!

Ele nunca tomou vacinas?

Só quando era bem pequeno, meses. Depois nos livramos!

A senhora sabia que sarampo pode dar pneumonia grave e infecção no sistema nervoso?

Recebo um olhar desafiador de minha interlocutora.

O pior são as coisas artificiais que as pessoas injetam umas nas outras! O senhor aceita uma indicação de um livro muito sério, de uma cientista muito renomada, sobre os perigos das vacinas?

Eu gostaria de falar que a vacina contra o sarampo reduziu em 84% as mortes pela doença ao ano no mundo. Que só neste século XXI mais de 20 milhões de vidas já foram salvas apenas por esta vacina, que a maior prova de que a imunização protege ela tinha em seu filho infectado, mas ficou para outra ocasião.

Ele com o gesto consternado e ela triunfante se despediram elegantemente e saíram da sala. A mãe voltou com metade do corpo porta adentro e falou comigo, algo sussurrante.

O senhor precisa se atualizar! Estar aberto a novas ideias! Vou mandar algumas referências para o seu email, permite?

Bom final de semana!

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