Linha de frente https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br É no hospital que as histórias de vida começam e terminam Sat, 25 Dec 2021 12:45:44 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O significado de um dia sem mortos https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/11/08/o-significado-de-um-dia-sem-mortos/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/11/08/o-significado-de-um-dia-sem-mortos/#respond Mon, 08 Nov 2021 22:14:31 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/Mulher-de-alta-se-despede-do-hospital-300x215.jpg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=182 No feriado prolongado dedicado à memória dos mortos, eu dei três plantões na emergência referenciada em que se atendem exclusivamente casos graves, entre os quais não fiz um único diagnóstico de Covid-19. A realidade da chamada linha de frente é uma biópsia do que acontece no mundo ao redor, a cidade de São Paulo inteira registrou um óbito no dia de finados. Então, uma centelha de esperança me aqueceu.

A sequência de notícias positivas culmina neste dia 08 de novembro, quando pela primeira vez desde o início da pandemia, o boletim epidemiológico do estado de São Paulo não registrou um único óbito. Nenhum. Nenhuma morte por coronavírus.

Falando de um hospital que precisou providenciar leitos de internação na emergência, onde já passamos mais de uma semana com paciente aguardando vaga de terapia intensiva, onde a gente intubava uma pessoa enquanto outras aguardavam o primeiro atendimento em macas de ambulância, há um alento. E esse resultado se deve sem dúvidas ao avanço da vacinação em São Paulo e no Brasil.

Apesar dos próceres do negacionismo que boicotaram como puderam a imunização, bastou a chegada das vacinas para os profissionais do Sistema Único de Saúde distribuírem e vacinarem maciçamente a população. Graças a esses trabalhadores e ao nosso povo, que tem como patrimônio o maior programa público de imunizações do mundo, por aqui a realidade atropelou os grupos de WhatsApp e propaganda oficiosa, 94% das pessoas assumiram querer se vacinar.

Destaque-se que é possível que o número zero de óbitos seja corrigido nos próximos dias, mas esse registro de um dia sem mortos em São Paulo deve ser celebrado e significa, antes de tudo, que as vacinas salvam vidas e nos dão expectativas de superar a pandemia.

Entretanto, destaque-se que os imunizantes contra a Covid-19 são mais eficazes para prevenir casos graves e mortes do que infecções, e as chamadas medidas não farmacológicas, como uso de máscaras, ventilação de ambientes e limitação do número de pessoas em eventos para evitar aglomerações são necessários para evitarmos a recrudescência observada na Europa, em que países com menor cobertura vacinal do oriente passam pelo pior momento da pandemia tanto em número de casos quanto de mortes, e no ocidente há uma explosão de casos com aumento menor de óbitos graças às vacinas.

Quem nessa altura segue fazendo propaganda antivacina atenta contra a vida em larga escala, assim como quem alega razões individuais para recusa da imunização que não protege apenas o indivíduo mas toda a coletividade.

Nesse momento é possível e necessário celebrar a vida, a ciência, o nosso tão atacado SUS e seus trabalhadores. Mas não percamos o horizonte de cuidados, nem esqueçamos que a pandemia descontrolada em diversos lugares do globo, a propaganda antivacina, e a distribuição desigual dos imunizantes – enquanto 51% da população mundial recebeu ao menos uma dose de vacina contra a Covid-19, em países de baixa renda esse número cai para 4,2%, faz com que o conjunto da humanidade siga em risco.

Haverá porvir, mas para superar a Covid-19 precisamos vencer as epidemias de individualismo e de desinformação. Haja vida!

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A melhor resposta: o espetáculo da vida https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/morte-e-vida-na-pandemia/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/morte-e-vida-na-pandemia/#respond Fri, 28 May 2021 13:15:37 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/grávida-com-as-mãos-na-barriga-300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=90

“E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida”

João Cabral de Melo Neto

Débora e Janice estiveram grávidas nos mesmos dias, as crias se conheceram de dentro dos ventres. José dizia para o amigo Valter: nossos filhos ainda vão se casar e nos dar um neto, sorrindo. Zezinho era menor e menos encorpado que Aline, o pai alertava que se ele não comesse não cresceria para casar com a garota. Eles cresceram pertinho, na mesma comunidade, separados por poucos metros na escola dominical.

José morreu de repente. Foi de coração. O menino ainda não estava criado. Após alguns anos Zezinho, usando o anel de seu pai, casou com Aline. Nos dias festivos reuniam-se com a família na casa da matriarca Arminda, lúcida e altiva em seus muitos anos. Ela abraçava Aline e perguntava: quando eu vou ter um bisneto? A neta sorria e dizia que chegaria o tempo.

Chegou a pandemia. Já não era possível abraçar como sempre, nem se juntar para almoçar na casa da vovó. Houve distância, houve silêncio, houve saudade.

Vovó Arminda contraiu o coronavírus, foi internada, acabou sendo admitida numa unidade de terapia intensiva. Alguns dias depois o papai Valter: aquele homem forte, que tinha um voz doce e tocava violão como ninguém, também ficou cansado, RTPCR positivo, admitido no hospital via emergência. Os dias quase não passaram para Aline com dois amores internados. Em suma: Arminda não soube quando seu filho foi internado, Valter não soube quando sua mãe morreu. Algumas semanas e muitas intercorrências depois ele também se foi. Vovó e papai, adeus.

Não havia muita cor naqueles dias de luto até que o teste veio com duas fitinhas: existia uma promessa de vida pulsando em Aline. Quando Zezinho tomou conhecimento fechou os olhos e se conectou com o seu pai: ele tinha avisado! Agora era a sua vez.

Zezinho esteve com tosse, catarro e cansaço: Covid-19 confirmada. Precisou se isolar da mulher. Ela ficou sozinha, sozinha. Após duas semanas (eternas) ele retornou com o quadro resolvido, o vírus passou longe dela.

Contrações, maternidade, dilatação, parto natural. Pedro nasceu forte, pulsante, lindo. Aline ficou extasiada, em seus braços e em seu seio cabia todo o amor do mundo. Ela olhou o seu pequeno e viu nele as promessas de vida mais bonitas. Ali viviam: as palavras de José, as músicas de Valter, os sonhos de Arminda. O choro do seu filho trazia um sinal de que a vida se impõe. Antes de pegar no sono pela primeira vez, ela abraçou o pequenino e sussurrou: bença, vovó Arminda, aqui está o seu bisneto.

No princípio era o verbo, agora chegou o tempo.

 

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Mãe morre de Covid-19 e cede o leito ao próprio filho https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/mae-morre-de-covid-19-e-cede-o-leito-ao-proprio-filho/ https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/mae-morre-de-covid-19-e-cede-o-leito-ao-proprio-filho/#respond Mon, 10 May 2021 23:28:45 +0000 https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Leito-vago--300x215.jpeg https://linhadefrente.blogfolha.uol.com.br/?p=76 Quando Maria da Conceição descobriu que esperava uma criança, a maior preocupação que lhe ocorreu foi não ter um lugar para acolher o seu filho, um quartinho certamente não seria tangível, mas quem sabe um bercinho? Assim, após muitas jornadas de trabalho, adquiriu através de crediário o berço e as roupinhas de cama, muito bonitas e arrumadinhas.

Agora Renato tem quinze anos, Maria da Conceição se preocupa desesperadamente com a capacidade de oferecer comida ao seu filho e pagar o aluguel atrasado. A pandemia consterna, já perdeu gente querida, mas não seria possível parar de trabalhar. Renato tenta, com dificuldades, acompanhar as teleaulas e joga videogame nas horas livres que passa sozinho em casa.

Maria da Conceição apresenta tosse, febre e um crescente desconforto para respirar. Renato tem sintomas semelhantes após alguns dias. A mãe pensa em procurar o hospital, mas quem cuidaria de Renato? Por isso resiste até que perde os sentidos, imediatamente seu filho chama a ambulância do SAMU.

A mulher é admitida na emergência em estado grave, a saturação de oxigênio é imensurável em suas mão frias. Precisa de intubação, cateter central, medicamento para manter a pressão arterial. Com alguma melhora, Maria da Conceição é transferida para a unidade de terapia intensiva.

Renato, alheio às estatísticas, piora progressivamente e precisa ser internado. Como não há vagas, permanece sob observação na sala de emergência. O rapaz chora quando ninguém está olhando, tanto por medo daquele ambiente hostil e da doença, mas também por não estar com sua mãe, nem ter notícias dela. É a primeira vez que são separados. Ele permanece pendurado na máscara de ventilação não invasiva, com alta fração inspirada de oxigênio. Da central de regulação, não chega sequer perspectiva de leito.

Após um choque refratário e queda persistente da oxigenação, sem conhecimento da internação de seu garoto, Maria da Conceição, após muito esforço, entrega o seu próprio leito para receber o seu filho na unidade de terapia intensiva.

** Este texto inaugura uma nova Seção neste Blog: “Cotidiano da pandemia”, inspirada na coluna “Cotidiano Imaginário” em que o médico e escritor Moacyr Scliar publicava na Folha textos de ficção baseados em notícias do jornal. O livro “Imaginário cotidiano” (Global 2001) reúne textos produzidos por Moacyr de 1996 a 2001. Aqui, compartilharemos textos ficcionais baseados em publicações em redes sociais.

“Essa semana a vaga de UTI Covid de um garoto de 15 anos só foi possível pq a mãe dele, que estava nessa vaga, faleceu no dia anterior. Ele não sabe disso, e muito menos que a mãe se foi… Ninguém está preparado para isso, ninguém! #secuide“. Publicado no twitter por @casalInfecto, perfil dos infectologistas Danilo Galvão e Tassiana Galvão.

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