O pulso ainda pulsa

Parada! Parada! Parada!

José, um homem negro de 50, é trazido para a emergência após uma parada cardiorrespiratória na residência, seu filho mais velho, já adulto formado foi o primeiro a iniciar as compressões torácicas orientado pelo profissional do Samu ao telefone. A médica socorrista chegou à cena e constatou assistolia, é ritmo de parada mais grave, quando não há nenhuma atividade elétrica no coração. Reanimação, adrenalina, intubação na cena. A colega me passou o homem com o coração batendo mas fraco, fraco. As pupilas não reagiam à luz. A pressão arterial não subia mesmo com altas doses de noradrenalina. 

Converso com o rapaz, ele sabe da gravidade do quadro de seu pai, da quase impossibilidade de reversão. 

Tranquilo, doutor, estou tranquilo. O problema são meus irmãos, somos sete, até criança – e chora tenso.

Poucos minutos depois anunciamos o óbito.

Lembro de meu sogro que não conheci, um homem negro que morreu subitamente de infarto aos 49 e de meu cunhado que ainda era menino.

Dia de permanecer na emergência, passo os casos de mim para mim mesmo e para o time do plantão noturno: uma interna, um interno (estudantes do último ano de medicina), um R2 (residente do segundo ano), uma R1(residente do primeiro ano) e para o assistente que veio dividir comigo as atribuições.

O novo assistente, primeiro dia no pronto-socorro, foi nosso residente. A gente fica feliz quando nossos alunos voltam como colegas, sinal de que levaram algo para a suas vidas da formação que lhes oferecemos. 

Enquanto discutimos os casos, algo pessimista, eu falo com os internos sobre as questões pessoais que precisamos administrar para estarmos ali, na emergência. 

Perto da meia-noite chega uma ambulância do Samu, suporte básico sem médico. Trazem João, um homem negro de 47 anos, mais uma parada cardiorrespiratória. Penso novamente no avô de meus filhos que não conheci, enquanto corro pro carrinho de parada. Checo o ritmo: fibrilação ventricular.  Gravíssimo, mas é possível reverter com choque no peito. 

Projeto meu corpo para a frente, apoio as pás do desfibrilador no tórax do paciente. Eu me afasto, vocês se afastam, todos afastados. Carrego as pás. Choque! Compressões torácicas. Nada acontece, o coração do homem permanece inerte.

Distribuo as tarefas na sala. Os internos comprimem o peito 100 vezes por minuto, o residente controla a via aérea, um interno da cirurgia se oferece para controlar o tempo. A enfermeira organiza os técnicos e estudantes de enfermagem, eles administram adrenalina e antiarrítmicos na veia. Ela tem muita experiência em emergências cardiológicas, tudo organizado, sabe todos os próximos passos. A equipe trabalha compenetrada. 

Eu falo no ouvido do homem que ele tem que sair dessa, o coração vai voltar a bater! Estou confiante.

Paciente intubado, bem ventilado. Todos os protocolos feitos em acordo com as melhores recomendações de suporte avançado de vida, o coração persiste em não voltar.

Uma linha reta aparece no monitor, parece que não vai dar mais. A interna coloca as pás no peito do homem, fibrilação, ainda cabe um choque. Choque! Ela massageia buscando forças, após 12 ciclos, com o devido revezamento, todos suados.

Eu me aproximo para o próximo ciclo, subo a escadinha, um novo traçado surge no monitor. Coloco a mão no pescoço do homem procurando a carótida: tem pulso! Tem pressão! Tem perfusão! Nos abraçamos na sala, isso não é frequente, sair abraçando a equipe. Mas o abraço naquela hora foi necessário. 

O eletrocardiograma revela um infarto extenso e o paciente vai transferido para o serviço de hemodinâmica de referência, para um cateterismo cardíaco de urgência. O residente o conduz para a ambulância, as luzes vão se afastando.

Eu permaneço torcendo do fundo de meu coração para que esse João conheça os seus netos, diferente de meu sogro que as circunstâncias da vida e da morte não permitiram conhecer meus filhos.

No caso de hoje, como disse Arnaldo: o pulso ainda pulsa.

O pulso ainda pulsa!