Os professores e o milagre da vida

Nesses anos atuando com pacientes graves em situações críticas aprendi aos pouquinhos a ver a morte sem chorar, como na música de Vandré, mas há alguns dias saindo do hospital, os soluços e lágrimas me desafiaram, eu fechei os olhos e regressei no tempo. Prepare seu coração.

Eu venho lá do sertão. No início dos anos 1990 cheguei a São Paulo, fui morar na Vila Carioca, um bairro operário, lá ingressei na Escola Municipal Desembargador Francisco Meirelles.

No começo do ano letivo de 1993 o professor de Ciências entrou na sala, com ciso, nem um sorriso ofereceu. Classe lotada, quente, fevereiro. Ninguém o conhecia. O homem escreveu na lousa, com o giz arrastando e fazendo aquele barulho: Professor Jacomo. 

A molecada começou a debochar, com gritos, urros e eventuais bolas de papel lançadas para cima.

Ele virou de frente para a sala e permaneceu sem mexer um músculo da face. Quando só ouvíamos a sua respiração ele abriu os braços, parlando com as mãos e fez um discurso tão firme que ficamos todos envergonhados.

A escola, assim como a rede do município, estava em situação precária, apesar de professores dedicados e de uma comunidade participativa. Jacomo nos disse que se não levássemos a sério os nossos estudos, se não respeitássemos os nossos professores, cumpriríamos o projeto que visava a destruição da educação pública e a nossa exploração como mão de obra barata. 

Foi naquela sala quente, na sexta série B, na escola cercada de fábricas, que pela primeira vez ouvi um professor falar da Teoria da Evolução. Professor Jacomo apresentou o velho Charles para mim e meus amigos de um jeito bonito e comovente. Na aula sobre a origem da vida, ele fez um modelo de giz colorido na lousa ilustrando como a partir de gases naturais, agregados de carbono, nitrogênio, oxigênio e hidrogênio teriam surgido os primeiros peptídeos e que esses em determinado momento passaram a se replicar, até que surgiu vida, feita de mágica aleatória.  

Eu já tinha um tipo de paixão pela ciência, a partir de então eu e ela estávamos mais pertinho, conduzidos pela mão do mestre, que também fazia surgir vida: com o giz na lousa perante quarenta adolescentes numa sala de aula na periferia da metrópole.

Com o tempo, classe e professor foram se aproximando, fomos nos entendendo. Ele coordenou a apresentação de nossa turma na festa da primavera. Os jovens bravos do início do ano nos apresentamos fantasiados de margaridas. Ele lançou sementes bonitas em nós todos, assim outras primaveras foram possíveis. 

Mas o mundo foi girando, anos depois quando passei a estudar Medicina as aulas de Jacomo fizeram ainda mais sentido para mim. Resolvi escrever uma carta de agradecimento e fui até a escola Gualter da Silva, que alguém me disse que ele dirigia; ninguém me deu notícia, disseram que ele não trabalhava mais lá. Voltei com a carta para casa e não sei o que fiz com ela.

Felizmente encontrei o meu professor na rede social muitos anos depois e voltamos a nos falar. Eu agradeci pelas sementes que ele lançou por aqui, e ele demonstrou satisfação. O homem reproduzia textos que eu escrevia, entrevistas que eu oferecia, com o preâmbulo: “o doutor foi meu aluno”.

Há poucos meses a esposa de Jacomo faleceu, nós falamos sobre sentimentos e condolências, ele ainda vivia o luto quando morreu. Talvez por isso engasguei, naquele momento em que soube de sua morte. Chorei no corredor repetindo: obrigado, obrigado, obrigado.

Nesse dia dos professores, em nome de sua memória, querido Jacomo Facio Neto, agradeço às professoras e aos professores que colaboraram com minha formação. Agradeço também a todos os educadores que insistem em semear, que resistem à barbárie, e nos dão esperança no porvir. A educação promove milagres, graças a profissionais que vão além das limitações materiais, da falta de reconhecimento, de condições precárias de trabalho para fazerem surgir e multiplicar a vida. Haja sementes, há primavera!