Manifestações a favor do descontrole da pandemia e do colapso econômico
Um dos primeiros casos graves de Covid-19 que atendi, ainda em março de 2020, foi o de Edwiges, 44, negra. Ela trabalhava como cuidadora de idosos e estava na residência dos patrões num bairro rico, quando foi resgatada pela equipe do Samu, já em insuficiência respiratória.
A imagem da tomografia de tórax com pneumonia bilateral, foi suficiente para deixá-la em isolamento respiratório e para justificar a coleta do RT-PCR para o Sars-CoV-2. Eu solicitei transferência para uma UTI destacada para pessoas infectadas pelo coronavírus, mas ela não aguentaria aguardar sem ser intubada. Expliquei o procedimento e ela assentiu com a cabeça, respirando rápido e superficialmente, mesmo com máscara de oxigênio com reservatório.
O fisioterapeuta, o enfermeiro e eu formamos um triângulo em volta da paciente. Bem posicionada, tudo checado. Sequencia rápida de intubação: analgésico para tirar a dor, sedativo para dormir, bloqueador neuromuscular para paralisar a respiração. Ela tinha uma via aérea difícil, mal dava para visualizar, mas felizmente, com os dispositivos apropriados, fizemos o procedimento adequadamente. Ao final do plantão, ela já estava admitida em UTI de referência para casos de Covid-19.
Em tempo de cuidar dos outros pacientes, tirei a paramentação e fui ver Salustiana, 56 anos, branca. Trabalhava como catadora de material reciclável e fora internada havia um dia com queimadura extensa. Vi aquele corpo frágil coberto de faixas. Ela queimou-se com álcool que usava para acender a lenha com que cozinhava em seu barraco numa comunidade vizinha ao hospital. Ela não tinha dinheiro para comprar gás de cozinha. Felizmente, o hospital do SUS de referência de cirurgia de grandes queimados tinha uma vaga para ela e aceitou a paciente prontamente.
A cena de Edwiges e Salustiana internadas na mesma unidade me revisita, sempre que emerge o falsa dicotomia entre priorizar o controle pandemia ou economia, dado que nosso povo adoece e morre em consequência de ambas as tragédias.
Daquele dia até hoje houve centenas de milhares de mortes, e aumento vertiginoso não apenas do gás de cozinha mas de diversos combustíveis e fontes de energia, além da fome e do desemprego — quantas vezes histórias como as de Edwiges e Salustiana se repetiram?
O Brasil, por culpa de suas maiores autoridades, com destaque para o presidente da República, falhou miseravelmente tanto no controle da Covid-19, quanto na gestão da economia. Em retrocessos não apenas institucionais, mas civilizatórios. Por isso, pergunto: em defesa de que manifestantes adotam uma agenda de ataques às instituições, à independência entre os Poderes da República e à própria democracia? Os que vão às ruas neste 7 de setembro em apoio ao governo Bolsonaro, o fazem a favor do descontrole da pandemia ou do colapso econômico? São favor da peste, da fome ou de ambas?