Mãe morre de Covid-19 e cede o leito ao próprio filho

Quando Maria da Conceição descobriu que esperava uma criança, a maior preocupação que lhe ocorreu foi não ter um lugar para acolher o seu filho, um quartinho certamente não seria tangível, mas quem sabe um bercinho? Assim, após muitas jornadas de trabalho, adquiriu através de crediário o berço e as roupinhas de cama, muito bonitas e arrumadinhas.

Agora Renato tem quinze anos, Maria da Conceição se preocupa desesperadamente com a capacidade de oferecer comida ao seu filho e pagar o aluguel atrasado. A pandemia consterna, já perdeu gente querida, mas não seria possível parar de trabalhar. Renato tenta, com dificuldades, acompanhar as teleaulas e joga videogame nas horas livres que passa sozinho em casa.

Maria da Conceição apresenta tosse, febre e um crescente desconforto para respirar. Renato tem sintomas semelhantes após alguns dias. A mãe pensa em procurar o hospital, mas quem cuidaria de Renato? Por isso resiste até que perde os sentidos, imediatamente seu filho chama a ambulância do SAMU.

A mulher é admitida na emergência em estado grave, a saturação de oxigênio é imensurável em suas mão frias. Precisa de intubação, cateter central, medicamento para manter a pressão arterial. Com alguma melhora, Maria da Conceição é transferida para a unidade de terapia intensiva.

Renato, alheio às estatísticas, piora progressivamente e precisa ser internado. Como não há vagas, permanece sob observação na sala de emergência. O rapaz chora quando ninguém está olhando, tanto por medo daquele ambiente hostil e da doença, mas também por não estar com sua mãe, nem ter notícias dela. É a primeira vez que são separados. Ele permanece pendurado na máscara de ventilação não invasiva, com alta fração inspirada de oxigênio. Da central de regulação, não chega sequer perspectiva de leito.

Após um choque refratário e queda persistente da oxigenação, sem conhecimento da internação de seu garoto, Maria da Conceição, após muito esforço, entrega o seu próprio leito para receber o seu filho na unidade de terapia intensiva.

** Este texto inaugura uma nova Seção neste Blog: “Cotidiano da pandemia”, inspirada na coluna “Cotidiano Imaginário” em que o médico e escritor Moacyr Scliar publicava na Folha textos de ficção baseados em notícias do jornal. O livro “Imaginário cotidiano” (Global 2001) reúne textos produzidos por Moacyr de 1996 a 2001. Aqui, compartilharemos textos ficcionais baseados em publicações em redes sociais.

“Essa semana a vaga de UTI Covid de um garoto de 15 anos só foi possível pq a mãe dele, que estava nessa vaga, faleceu no dia anterior. Ele não sabe disso, e muito menos que a mãe se foi… Ninguém está preparado para isso, ninguém! #secuide“. Publicado no twitter por @casalInfecto, perfil dos infectologistas Danilo Galvão e Tassiana Galvão.