Dengue grave: uma parábola sobre uma doença negligenciada
Essa é uma história de alguns anos atrás, mas poderia ser do último verão.
A interna Maria chega para o plantão noturno na emergência do hospital universitário, ela atenderia casos triados a partir da porta do pronto socorro. Primeira ficha: avalia Rute, vinte e quatro anos, assim como ela.
A paciente tem febre há dois dias, dor difusa: na cabeça, nos músculos e articulações, sem sintomas respiratórios: não é síndrome gripal. Sem alterações nos diversos aparelhos, pressão arterial e sinais vitais todos normais. A hipótese mais provável nessas latitudes é dengue, mas pode ser outras doenças virais. Após discutir com Alberto, o médico assistente, a interna recomenda Rute a procura da Unidade Básica de Saúde para coleta de sorologia de dengue e orienta sinais de alarme para retorno à emergência, reforça que a ela não deve tomar AAS ou anti-inflamatórios, só analgésicos simples e muita hidratação. Em tempo, caso o quadro não se altere, deve ser reavaliada em até 48 horas.
É uma virose! Não conseguimos distinguir exatamente qual nesta avaliação, mas vale a pena fazer teste de dengue e observar se surgem sintomas respiratórios.
Destaque meu: viroses são doenças causadas por vírus, a maioria com boa evolução em poucos dias, sem tratamentos específicos disponíveis. Algumas, entretanto, podem evoluir com formas graves, como Covid-19, influenza e dengue, por exemplo.
Judite, a irmã que acompanhava a paciente se despede olhando para baixo e repetindo para si: virose! Virose! Virose!
Dez dias depois Maria retorna ao plantão, solicitaram que atendesse uma jovem que estava abalada porque perdeu alguém da família, que tinha acabado de morrer na unidade de terapia intensiva.
Na sala de atendimento encontra uma jovem de debruçada com a cabeça encostada na mesa.
Você!
Judite! O que aconteceu?
Foi você! Minha irmã está morta e a culpa é sua. Você disse que era uma virose!
Maria respira fundo, ensaia resposta, mas não consegue falar. Respira mais fundo, procura os sentidos, palavras não surgem — só soluços e lágrimas. Assim, ela chega à sala de discussão.
O que houve?
A paciente que atendi na semana passada morreu! A irmã… a irmã dela… a irmã dela disse que a culpa é mi-nha.
Ela se encolhe e se recolhe atrás das lentes embaçadas de seus óculos, permanece parada na cadeira, atônita.
A irmã sofria seu luto imediato pela perda de Rute. Disse que no dia seguinte à avaliação no pronto socorro resolveram ir a um sítio, próximo de uma represa, acharam que ela se recuperaria longe do estresse da cidade. O exame de dengue ficou para outro momento. E a procura de serviço médico só aconteceu sete dias depois quando a irmã ficou inconsciente. No hospital da pequena cidade que lhe acolheu observaram o sangue incoagulável, a pressão muito baixa. Felizmente houve meios de transferi-la para a UTI de nosso serviço, infelizmente não foi possível reverter o seu quadro de disfunções nos diversos aparelhos e impedir a sua morte.
Judite até hoje vive seu luto. Maria retornou para suas atividades e se formou, mas refutou fazer qualquer especialidade em que tivesse contato direto com pacientes. Alberto pediu afastamento do pronto-socorro, e os mosquitos Aedes se multiplicam livremente, carregando o vírus da dengue pelos territórios em situações de urbanização caótica. Não tem vacina eficaz, não há centenas de grupos procurando tratamentos específicos. A dengue é uma doença de populações negligenciadas, não para a economia, não fecha portos, e produz mortes sobretudo nas periferias das cidades e do mundo.