O amigo Pet Fly: sobre crianças em tempos de distanciamento
Preparação para plantão noturno. Horas antes começa a tensão, as crianças demandam carinho e perguntam da maneira mais direta possível: os pacientes são mais importantes do que nós? A gente tenta olhar nos olhos com alguns desvios, pedindo permissão de novo, e recebemos um “tá bem” pouco convicto. Essa é a rotina, desde que eles aprendem na escolinha que sábado e domingo são dias da família.
No distanciamento, as demandas afetivas são ainda mais prementes. Em casa de casal de médicos, imaginem. As crianças além das contingências que incidem sobre todos os pequenos, acabam decorando dados epidemiológicos, clínicos, tem opiniões sobre as estratégias mais efetivas para o controle da pandemia e sobre o que os pais deveriam fazer e não fazer na linha de frente.
A Menina Mais Velha, 6 anos, gosta de biologia, é uma pequena pesquisadora, passa períodos mexendo em potes de vidro e misturando soluções, pediu para eu arrumar na universidade material de laboratório de verdade, sem uso, para a sua pesquisa sobre a cura da Covid-19. Ela quer ser cientista e médica de família, como a mamãe, e dar entrevistas para a televisão sobre como enfrentar o coronavírus. O Menino Mais Novo tem 4 anos, é um poema concreto e gosta de matemática. Quando as aulas foram suspensas, ele ficou muito calado, quase sem querer brincar, pelos cantos, havia tempos que nem a Menina Mais Velha conseguia lhe motivar. Ele sequer entrava no elevador e não cogitava ultrapassar o portão do prédio.
Quem pega coronavírus fica sozinho no hospital! Eu tenho medo! Ele se aquietava, amuado.
Quando eu ligava por videochamada do plantão do hospital, todo paramentado, para dar boa noite, a Menina Mais Velha respondia com animação, o Menino Mais Novo não demonstrava maior confiança. Certas vezes ele até dizia: preferia que você estivesse aqui.
Quando aparecia algum ser vivo, virava companheiro. Foi por isso que o Menino Mais Novo brigou com irmã quando ela pegou um chinelo para deter um inseto. Não mate o Senhor Mosquito, ele é meu amiguinho! Uma joaninha que apareceu na varanda virou bichinho de estimação, chamada Joana-a-joaninha-intinerante após desaparecer na manhã seguinte e uma aranha que vive num jardim da praça ao lado, eventualmente observada, foi batizada de Dona Teiúda.
O Menino Mais Novo ficou algo mais tranquilo quando um garoto surgiu em nosso prédio e começou a frequentar a nossa casa. Eles não paravam de brincar juntos, chutavam bolas nas portas do apartamento a endoidar os vizinhos, jogavam xadrez de plástico, pulavam corda, ficavam trocando segredos debaixo da cama.
Agora era muito fácil ver o Menino Mais Novo alegre, sorridente, gargalhando com seu novo melhor amigo. O nome dele, ou apelido, é Pet Fly. A família inteira dele, lamentavelmente, tinha morrido. Foi o que as crianças nos disseram. Nós o acolhemos de bom grado.
De vez em quando eles desapareciam e a gente não sabia onde eles se escondiam, quando eu perguntava ao Menino Mais Novo onde eles tinham se enfiado ele dizia – o Pet Fly me ensinou a me teletransportar!
Eu os imagino viajando pelo espaço-tempo: brincando com dinossauros, explorando castelos medievais, jogando pedra na cabeça de Isaac Newton descansando em baixo da macieira e fazendo outras outras peraltices. Fato é que o Menino Mais Novo agora estava alegre motivado no brincar e pintar. Menina Mais Velha recebeu o amigo de bom grado, e mesmo eventualmente tendo algum ciúme pelo irmão, na maior parte do tempo lhe tratava com amenidade. Pet Fly passou a sentar-se à mesa e a passar noites conosco.
Tempos atrás, antes da breve reabertura das escolas observamos o Menino Mais Novo mais taciturno. Olhando pela fresta de seu quarto, a observar conversa alheia como a boa etiqueta desaconselha, vi os meninos sérios. Meu filho falava para seu amigo, sentados na cama, com alguma gravidade.
Pet Fly, eu vou precisar ir pra escola. Só que você não vai poder ir! Você precisa me esperar em casa, porque lá eles não aceitam crianças como você… assim: imaginárias!